Houve festa na aldeia

Há que esperar até amanhã, às 21h, pelo palmarés dos X Encontros de Cinema Documental que, para além de proporem um olhar sobre a produção estrangeira, foi uma oportunidade de aferir a saúde das obras nacionais. E aí, marcou "Entraste no Jogo, Tens de Jogar", de Pedro Sena Nunes.

Vistos 17 dos 18 filmes portugueses em concurso nos X Encontros de Cinema Documental - "Ultramar Angola 1961-1963", de João Garção Borges, que anuncia imagens inéditas do conflito, só passou ontem à noite -, fica inscrita na memória o calor de um braseiro que ilumina a noite minhota e enebria a população congregada em romaria. É "Entraste no Jogo, Tens de Jogar", de Pedro Sena Nunes, que supera o documento etnográfico para se lançar numa imparável orgia pagã. Foi a mais impositiva obra a concurso.O cenário é o vale da Serra d'Arga e o tempo é de festa local, dedicada ao Santo Padroeiro. Mas se a capela iluminada surge várias vezes ao longo do filme, Sena Nunes elege como centro físico do filme as barracas de comes e bebes tomadas por uma euforia popular, entre o libertário e o ébrio. As celebrações litúrgicas passam mais pela banda-som - o padre adverte os fiéis dos perigos vindos "dos inimigos que nos esperam a cada esquina" e da "conspurcação das almas" -, mas convivem/contrastam com a charanga, com a música "pimba" e com as imagens das danças toldadas pelo álcool, com as rixas e com o linguajar indecoroso das velhas minhotas, algures entre a coreografia do caos num filme de Emir Kusturica e a balbúrdia de "saloon" num "western".Começa sobre brasas e transforma o fumo que se eleva das gorduras e dos fritos num imenso nevoeiro que contamina os populares e força a homogeneidade entre todas as matérias, sacras ou profanas. O regional tende para o universal durante as manifestações populares, e é por isso que o filme é comentado por um romeno que se instalou na terra mas relembra os bailes em Bucareste. No final, vai tudo curar a ressaca para a missa.A competição nacional foi marcada, de modo geral, pela bipolarização entre duas grandes linhas temáticas e formais: um registo mais ligado à antropologia e etnografia, correspondentes a incursões por espaços e comunidades rurais, e um outro mais voltado para a urbe e para o retrato individual, destacando-se uma vontade de comunicar com várias formas de arte e de artistas. Na primeira linha, o filme de Sena Nunes não teve parceiros à altura (a não ser "Outros Bairros", crónica intimista das vivências na Pedreira dos Húngaros). "O Guardador de Rebanhos", realizado por Edgar Feldman e produzido por Paulo Rocha, é um objecto próximo mas menos inspirado, não conseguindo transpor para as imagens a fisicalidade das actividades de pastoreio barrancanho, e tentando resolver a falta recorrendo ao exterior: a belíssima poesia de Caeiro (dita por Diogo Dória) cola-se aos planos, mas o panteísmo fica-se pelas intenções.Quem seguiu a totalidade dos filmes exibidos, ficou com uma ideia bastante abrangente da geografia do Portugal regional. Só terá faltado o cinema: a Terra Fria transmontana foi captada em "Sabores", de Regina Guimarães e Saguenail, filme com sabor a "vídeo institucional"; ainda mais institucional - próximo do olhar turístico - é "Ventos de Largo", de António Barreiro Saraiva, sobre as terras do Barlavento algarvio; "Os Filhos do Volfrâmio", de Gonçalo Madaíl e Francisco Merino, perscrutam a desertificação da região das minas da Panasqueira com a moleza audiovisual do produto "tele-escola"; Miguel Vale de Almeida vai a Ilhéus, no Brasil, usando a câmara como "bloco de notas" para um trabalho antropológico sobre as raízes africanas dos locais - as limitações cinematográficas de "O Espelho de África" são, por isso, assumidas pelo autor.Já longe do campo e das serras, chegou um outro retrato de grupo, por António Escudeiro e Ana Marquês Gastão. "Separados Nós" entra na Casa de Saúde do Telhal, mas não foge à imagética "sociopoética" que se vulgarizou nas reportagens sobre institutos para doentes mentais. É pena que o filme insista mais na captação dos gestos dos internados do que nos seus depoimentos, visto que o material mais perturbante são os discursos dos doentes, atravessados por uma obstinação religiosa ou mística que seria útil ver aprofundada. "Ah Não Ser Eu Toda a Gente e Toda a Parte" é um inclassificável. Documentário? Porventura, estará mais integrado naquilo que se convencionou chamar "cinema experimental". Algures na Alemanha, captam-se imagens de água e neve, crianças e transeuntes, reflexos de céu e árvores em janelas de um comboio. Pressente-se um desejo de sublimação e transcendência que remete para uma solidão e para a exterioridade "pessoana" (Pessoa é citado no título). São apenas doze minutos, mas são fulgurantes, fluem com um sentido lírico impressionista e denotam as influências de Godard. Regista-se o nome da autora: Maria Joana Figueiredo.Na linha dos retratos sobre arte ou artistas, espreita sempre o perigo de asfixiamento: o documentário "artístico" é muitas vezes marcado por um formalismo bacoco disfarçado de vocação ensaística. "Dar Nome ao Indizível", de Tiago Pereira, é exemplo deste estado de coisas. As declarações de coreógrafos (Fiadeiro, Mantero, Côrte-Real) são esmagadas por uma desenfreada e inútil manipulação de materiais. "Let's Talk About It Now", mais interessante, sofre do mesmo mal. O "it" nomeado no título é o corpo, objecto primeiro e último do trabalho da coreógrafa Vera Mantero, acompanhada pela câmara de Margarida Ferreira de Almeida. Optando por uma estética de fragmentação na aproximação ao corpo, é paradoxal que os melhores momentos surjam com o registo afastado (do ponto de vista da plateia) dos espectáculos. Já "Vianna da Mota, "Cenas Portuguesas", de José Barahona, traça a biografia do músico através de fotografias de época, registos musicais e cartas pessoais. Mas não resiste à "dramatização" - que culmina no ridículo da utilização de um cavaleiro passeando por Sintra, sobre trechos de "Parsifal" de Wagner" - , fragilizando o filme com uma solenidade que contrasta com o humor que o retratado revela nos seus escritos.Ressalvem-se as excepções à regra: "Eduardo Batarda - o Meu Estilo é a Minha Força", de José Niza, e "A Fazer o Mal", de Luís de Matos. O primeiro é um objecto de pendor clássico, intercalando imagens dos quadros com o discurso do artista, mas furta-se ao academismo porque interroga o seu próprio material: como mostrar em imagens as imagens de Batarda? Enquadrando fragmentos na tela, reforça a violência figurativa do período inicial da obra de Batarda, e afastando mais a câmara acentua a distância irónica do período mais abstraccionista. É um "tête-à-tête" com o pintor, e por isso a figura de Alexandre Melo, comissário da exposição, surge em escala mais aberta, como se o filme se ressentisse dessa intromissão."A Fazer o Mal" poderia ser um "making of" de "O Mal", a longa metragem de Seixas Santos. É mais do que isso, é um retrato cúmplice desse realizador e um voto de confiança no gesto de manipulação cinematográfica. Oscilando entre um caloroso sentido de humor e uma vontade de transcendência do real - belíssima a imagem trabalhada das nuvens sob as quais passa um comboio -, aqui a manipulação dos materiais é justa. Dar a ver a construção do cinema - no primeiro plano Seixas Santos descreve uma cena que já vemos filmada no final de "A Fazer o Mal" - é também dar a ver como as imagens do cinema são uma improvável materialização de uma dimensão privada e íntima.

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