Hollywood do disparate

Steve Martin é um produtor sem dinheiro e sem talento que consegue que a maior estrela de Hollywood (Eddie Murphy) participe num filme seu sem ela própria se dar conta disso. "O Sem Vergonha", ou a Hollywood do disparate.

Ao olhar para o composto Steve Martin de hoje, é difícil imaginar que este homem de 54 anos foi um idiota nas suas disparatadas primeiras experiências cinematográficas, como "The Man with Two Brains", "The Lonely Guy" e "The Jerk". Agora, o cómico de cabelos grisalhos parece mais o pai da noiva, que é a sua personagem recorrente nos últimos filmes. No entanto, Martin voltou ao seu estilo maníaco de comédia em "O Sem Vergonha", que tem argumento seu e em que a sua personagem de falhado produtor de cinema foi tão apreciada pelos seus fãs americanos que eles transformaram o filme num sucesso. "Senti que era um filme que eu devia ao meu público. Queria apenas fazer um filme engraçado", diz.É como se Martin tivesse tomado o comprimido da juventude. Atravessa o ecrã como o maníaco Bobby Bowfinger, que, com pouco dinheiro, talento muito residual e enorme reserva de ingenuidade, consegue produzir um filme maio de ficção científica meio de acção, "Chubby Rain", com a maior estrela de Hollywood, Kit Ramsey (Eddie Murphy), sem que o próprio Ramsey se dê conta disso.É a quarta colaboração de Martin com o realizador Frank Oz e está ao nível do melhor que os dois fizeram. A maior surpresa, no entanto, é Murphy, que nunca tinha feito dupla com Martin e que aqui volta a interpretar múltiplas personagens. Mas só duas. Retraiu-se! Para além de fazer de Kit, Murphy está irreconhecível como o pitosga Jiff, que vai trabalhar para Bowfinger.O produtor Brian Grazer conta como as suas duas tão preciosas estrelas são reservadas e levam tão a sério o seu trabalho. E a acreditar no que ele diz, Martin e Murphy, homens sérios, sim, mas de enormes egos, deram-se bem, o que não é sempre o caso no negócio do cinema."Gosto que os nossos estilos sejam diferentes", diz Martin. "Eddie gosta de interpretar várias personagens, eu não. Gosto de ser eu próprio e tenho tendência para o absurdo e para o ridículo. Eddie é mais agressivo, e Kit é obviamente um paranóico. É porque somos tão diferentes que trabalhámos tão bem juntos."Martin escreveu o argumento e de acordo com Oz, "o seu ponto de vista é sempre o absurdo, por isso o argumento é tão bom". Foi fácil, completa Gazer, convencer Murphy a entrar no projecto. Ele gostou que Martin lhe tivesse dado tanto espaço - foi Murphy, por exemplo, que sugeriu que Kit fosse uma estrela de filmes de acção. Martin explica: "Não escrevi o argumento a pensar em Eddie. Mas a partir do momento em que ele aderiu, voltei a escrever tudo a pensar nele, e nas sugestões que ele deu, que trazem muita energia ao filme."Na verdade, o "filme dentro do filme" que Kit aceita fazer com Bowfinger, depois de, misteriosamente, "Chubby Rain" se tornar um sucesso, parece um álibi para celebrar Martin e Murphy como dupla. "Sim, absolutamente", concorda Martin. "Para além do mais, é o tipo de filme que essas duas personagens fariam. E é um final feliz."Martin andou a pensar em "O Sem Vergonha" durante anos e admite que o filme está cheio de referências a pessoas reais, a mais óbvia das quais é a sua ex-namorada, Anne Heche. Na história, Daisy, a "starlet" de Bowfinger (Heather Graham), depois de dormir com todos os homens, escolhe uma mulher, e essa relação lésbica causa furor na imprensa (como aconteceu com Heche, quando se ligou a Ellen de Generes). De qualquer forma, Martin insiste que não está a julgar Hollywood. Ele adora o lugar. "Vivi em Hollywood toda a minha vida e todas as personagens de 'O Sem Vergonha' são pessoas que conheci. Todos fomos 'outsiders' à procura de integração, à procura de chegar ao topo. Hollywood é um lugar fantástico, muito liberal, muito tolerante em relação às diferenças, sexuais, de raça ou de religião. Estou a falar a sério", sublinha.Isso não impede que o argumento não seja cínico. "Um dos meus diálogos favoritos é quando estou a ter relações sexuais com Heather Graham e ela diz 'Nunca te vou usar' e eu digo 'Nunca vou abusar da tua confiança' e nenhum de nós está a ser sincero. Mas isso tem mais a ver com a relação entre homens e mulheres do que com Hollywood." De qualquer forma, o filme mantém a ideia de que para se entrar para um filme a forma mais directa é a cama. "Não sei se é bem assim, gostaria de descobrir", brinca Martin.Martin nasceu em Waco, Texas, e cresceu na Califórnia, filho de um agente imobiliário e de uma dona de casa. Já era um 'performer' na adolescência, fazendo truques de magia e tocando banjo na Disneylândia. Virou-se para a "stand-up comedy", mas quase arrepiou caminho com os estudos de Filosofia na universidade. "Isso deu-me uma perspectiva nova sobre as coisas. Estudamos várias formas de pensamento e isso impede-nos de sermos seduzidos por algum deles." Citando Jerry Lewis e Laurel e Hardy como influências, dedicou-se ao seu "artesanato" - misto de observação astuta, linguagem corporal fluida e um turbilhão de piadas - e por isso foi bem sucedido. "Não sou agressivo e, se cheguei onde cheguei, isso prova que não é preciso sermos agressivos. Tinha vontade, viajava quilómetros para fazer um 'show' num sítio indescritível algures na Califórnia e actuava em circunstâncias horríveis. Não o fazia por ego, queria fazer as pessoas rirem."Escreveu comédias para Sonny e Cher, John Denver, Dick van Dyke e The Smothers Brothers Comedy Hour (que lhe valeu um Emmy) e, claro, para a emissão Saturday Night Live. Quando teve fama e fortuna no pequeno ecrã, e nos filmes, pôde abandonar os "tours" de comédia pelo país.O seu primeiro filme foi "The Jerk" (1979) e caminhou para o sucesso com "Dead Men Don't Wear Plaid" e "The Little Shop of Horrors". Os seus filmes tornaram-se mais "mainstream", como "All of Me", com Dustin Hoffman, e "Roxanne" (baseado em "Cyrano de Bergerac"). Depois chegou o popular "Parenthood", com uma das suas estrelas favoritas, Goldie Hawn. A sua incursão dramática, "A Simple Twist of Fate", foi um fracasso.A mais recente paixão de Martin tem sido a escrita. Escreve para a revista "New Yorker", publicou uma colecção de ensaios intitulada "Drivel" e escreveu a sua primeira peça, "Picasso at The Lapin Agile" [coleccionador ávido, tem vários originais de Picasso], passada em 1904, sobre Picasso e Einstein na sua juventude. Foi um sucesso "off"-Broadway em 1995.Hoje vive num isolamento auto-imposto. "Não quero ser a estrela das festas. Quero conhecer pessoas e falar com elas. Não é real a forma como somos tratados como estrelas. Não queremos isso na nossa vida pessoal."Participou recentemente num filme de pequeno orçamento de David Mamet, "Spanish Prisoner". "Quero fazer outro projecto com Mamet, mas raramente esse tipo de argumentos me vêm parar às mãos. Só recebo comédias, e é mais fácil, ironicamente, conseguir que um filme caro seja feito do que um filme barato." E houve um filme que ele perdeu: "De Olhos Bem Fechados". Stanley Kubrick queria-o, depois de ver "The Jerk", em 1979, mas o filme demorou duas décadas a acontecer. "Foi numa década diferente, não era a altura adequada, pelos vistos, por isso não me posso lamentar", diz Martin. Nem lamenta não ter aparecido no ecrã com Nicole Kidman? "Sim, provavelmente ela teria 11 anos na altura", responde, e não há qualquer malícia na sua resposta. De alguma forma, Martin, continua ingénuo, apesar do cabelo grisalho.

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