Em memória de Robert Kramer

O mérito do filme de Sérgio Tréfaut é ser uma compilação dos filmes documentais rodados por cineastas estrangeiros durante os anos quentes de 1974-75. O fantasma de Kramer passa por lá. Mas o melhor dos dois primeiros dias de competição nacional na Malaposta está reservado ao trio composto por Kiluange Liberdade, Inês Gonçalves e Vasco Pimentel: chama-se "Outros Bairros".

Foi no Festival da Figueira da Foz em 1975 que pudemos conhecer Bob Kramer e o seu extraordinário filme "Milestones" (co-realizado por John Douglas), obra súmula da esquerda militante americana que lutara contra a guerra do Vietname. Já há 10 anos que Kramer se situara na franja mais radical, perto de grupos que não hesitaram em passar à luta armada contra o poder, fascinados que estavam pela guerrilhas do Terceiro Mundo e pela resistência dos vietnamitas ao colosso "yankee". No seio do colectivo Newsreel, ele assinara um manifesto como "People's War" (filmado no Vietname do Norte bombardeado) ou "Ice", ficção política que assinalava o fascínio pela armas, na ponta das quais estaria o poder.Nesse mês de Setembro de 1975, em pleno "Verão quente", já Kramer estava a passar dos Estados Unidos para a Europa, por via de Portugal. Deixando-se instrumentalizar pelo PRP, as Brigadas Revolucionárias e os militares do Copcon, aqui realizaria um lamentável "Cenas da Luta de Classes em Portugal". E por aqui seria também convidado pelo seu amigo Seixas Santos a fazer o papel de uma espécie de Hammet em "Gestos e Fragmentos": era o visitante que olhando para uma fotografia com Vasco Gonçalves e Otelo se interrogava porque é que aqueles homens se tinham separado.O fascínio pelas armas ressurgiu, a par de uma inegável mestria formal, em "Guns" (1980), primeira ficção que Kramer realizou na Europa. Radicou-se em França, e deu disso sinais com um belo telefilme, "Naissance" (1981), sobre o nascimento de uma criança no dia em que Mitterrand subiu ao poder. Embora Bob reclamasse que a Europa era tanto a sua casa como os Estados Unidos, o certo é que no Velho Continente andou algo perdido (chegou a fazer um filme desastroso e quase invisível, "Diesel") durante dez anos: no fundo, era um cineasta americano e, apesar do notório formalismo de algumas das suas ficções, era um cineasta do directo e da militância. Este grande realizador que em 1975 passara dos Estados Unidos para a Europa via Portugal haveria de fazer o caminho inverso, em 1987, de novo via Portugal. Claramente autobiográfico, "Doc's Kingdom" foi produzido por Paulo Branco, cá rodado e contando com a participação de João César Monteiro (era Kramer que deveria ter feito o papel do misterioso homem que dá à costa, ao mesmo tempo que se sabe do assassinato do líder palestiniano Hassan Al-Sartawi em Montechoro, em "À Flor do Mar" de Monteiro). O seu alter ego Paul McIsaacs, protagonista de "Doc's Kingdom", retomou o papel num extraordinário misto de ficção e documentário, "Route One/USA" (1989), filme do regresso aos Estados Unidos, espantoso documento sobre o que é ser americano, em que Doc/McIsaacs percorria uma estrada na "East Coast", começando na fronteira com o Canadá e terminando na Florida.Até 1999, Kramer continuou a fazer filmes entre um lado e outro do Atlântico, uns mais ficcionais, outros mais documentais, outros ainda íntimos ou cartas (como as "Vidéolettres" que trocou com o cineasta britânico Stephen Dwoskin, "Berlin 10/90", em que num quarto de banho, sozinho, reflectia sobre a queda do Muro, ou "Ghost of Electricity", comovente declaração de amor a Erika, companheira de tantos anos.Mas o destaque vai para outro filme extraordinário, "Point de Départ/Starting Point" (1993). Com uma equipa que entretanto constituíra em França, Kramer foi ao "ponto de partida", ao Vietname, fazer um "atelier" de formação de cineastas, ocasião para ver como estava o país pelo qual tanto tinham lutado, ele e os seus colegas de militância (uma das quais, que ele também visitava, ainda presa por actos armados nos Estados Unidos), país esse para o qual ele ainda queria olhar com esperança, mas não podendo iludir os limites à liberdade da expressão."Starting Point" proporcionou os nossos últimos encontros. Um dia de Setembro de 1993, no Festival de Telluride, nas Montanhas Rochosas, a mais de 2000 metros de altitude, Bob, impressionado com "Vale Abraão", pediu-me se conseguia que Oliveira fosse por sua vez ver o filme dele. Achei o pedido algo delicado, sabendo da pouca estima de Oliveira por "esquerdistas", mas transmiti-o e, de facto, o Manoel foi ver "Starting Point". Com surpresa, descobri os dois em conciliábulo, dizendo como cada um tinha gostado do filme do outro.Na sexta-feira deparei com uma notícia na última página do PÚBLICO: Robert Kramer morrera. É urgente rever os seus filmes, dar a vê-los a tantos que nunca tiveram a oportunidade de sentir o choque de "Milestones", "Route One/USA" ou "Starting Place"!

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