A romântica aspiração de Lamego

Durante nove meses de 1835, Lamego foi capital de distrito, mas, em Dezembro desse ano, um decreto do antigo ministro do reino, Mouzinho da Silveira, transferiu a sede para Viseu. A mudança nunca foi bem aceite pelos lamecenses, que, ciclicamente, têm erguido a voz para reclamar o estatuto perdido. O assunto volta agora a agitar Lamego, mas não há unanimidade entre a classe política e a população parece alheada. O presidente da Câmara de Lamego já admite que esta poderá ser "uma guerra perdida", porque se partiu para ela "sem primeiro se ter constituído um exército".

Pouco gente de Lamego saberá quem foi Mouzinho da Silveira, mas os mais bem informados sobre o antigo ministro de D. Maria II não o têm propriamente em boa conta. Para esses, Mouzinho, "que, fortuitamente, e parece que de encomenda, fora guindado (..) às cadeiras do poder, era inconcebivelmente pessoa imponderada e duma incoerência a toda a prova". O seu grande pecado foi ter subscrito um "sinistro e trágico decreto" que acabou com o distrito de Lamego e criou o de Viseu.Foi em 15 de Dezembro de 1835, em nome da centralidade de Viseu e da "maior comodidade dos povos". Desde então, Lamego perdeu importância, mas ganhou uma causa, que tem irrompido ciclicamente. No passado dia 17 de Setembro, o assunto voltou à ribalta. Em plena campanha eleitoral, um deputado municipal do PSD, António Augusto dos Santos, apresentou na assembleia municipal lamecense uma proposta para a criação de um movimento de restauração do distrito administrativo de Lamego, englobando todos os municípios da região do Douro-Sul (Lamego, Cinfães, Resende, Tarouca, Sernancelhe, Armamar, Tabuaço, S. João da Pesqueira, Moimenta e Penedono). Fê-lo com algum sarcasmo para Mouzinho da Silveira, invocando razões históricas, religiosas, económicas e sociais e também a "situação geográfica da cidade de Lamego, em função da comodidade dos povos limítrofes". A moção foi aprovada por unanimidade e aclamação, porque não há um só lamecense que se oponha à ideia de ver novamente Lamego como capital de distrito. "Se bater as casas uma a uma, vão todos dizer-lhe que querem o distrito", garante Melchior Coelho, reitor do Santuário dos Remédios, em Lamego. Mas tamanho consenso não quer dizer que esteja em curso um grande movimento popular, pelo contrário. A esmagadora maioria da população do Douro-Sul "permanece alheada" da reivindicação lamecense, como reconhece Pinto dos Santos, presidente da Câmara de Tabuaço, actual líder da Associação de Municípios do Douro-Sul e adepto da criação do distrito de Lamego. Fora da cidade são até poucos os que já ouviram falar no assunto. "Aqui não consta nada", diz Joaquim Morais, fruticultor e proprietário de um dos mais frequentados restaurantes de Armamar. "Isso é coisa dos de Lamego. Eles são uns vaidositos", diz Rui Marques, empregado num café de Tarouca. Mesmo entre os autarcas da região não falta quem encare a ideia da restauração com reservas ou até com desagrado. O presidente da Câmara de Armamar, o social-democrata Hernâni Almeida, é um deles. "É prematuro estarmos a falar na criação do distrito de Lamego. Não vem muito a propósito, porque a derrota da regionalização ainda está fresca na memória de todos. Vamos esperar alguns anos, para que uma nova geração possa concretizar a regionalização. Mais distritos não resolviam nada", sustenta. Esta posição é partilhada por outros autarcas da região do Douro-Sul e mesmo entre os que se afirmam declaradamente a favor da criação do novo distrito há também quem discorde da oportunidade e da forma como a ideia da restauração foi lançada, como é o caso do presidente da Câmara de Lamego, o socialista José António dos Santos. "Declarámos uma guerra sem primeiro termos constituído um exército. É por isso que esta pode ser uma guerra perdida", diz. Para o autarca, "o assunto foi colocado com alguma falta de cuidado [em plena campanha eleitoral e sem prévio concerto no seio da classe política da região], pelo que toda a gente foi apanhada de surpresa. Apesar de ser uma velha aspiração e de haver razões fortes para a defendermos, tem que ter legitimidade e apoios". José António dos Santos acha que "a conjugação dos astros ainda não estava no ponto certo, para se avançar". E entende que se deve "aguardar dois ou três meses para ver o que vai acontecer com os altos-comissários regionais, saber qual vai ser o novo papel dos distritos", porque "se calhar estamos a assistir a um processo de esvaziamento e, se for assim, não faz sentido criar mais distritos".O presidente da Assembleia Municipal de Lamego, Joaquim Sarmento, poderá, afinal, estar mesmo certo, quando diz que a criação do distrito é uma "reivindicação romântica" do Norte do distrito de Viseu. Mas não foi por cepticismo que o autarca usou aquela expressão. A razão é histórica: Lamego foi sede de distrito durante nove meses, de Abril a Dezembro de 1835, ou seja, nos primórdios do Romantismo em Portugal. Seja como for, "este é apenas um ponto de partida e não um ponto de chegada", sublinhava ao PÚBLICO Joaquim Sarmento, justificando o desejo de emancipação de Lamego em relação a Viseu com a "ostracização" de que, na sua opinião, tem sido vítima a parte norte daquele distrito. "Nos últimos 50 anos, o maior investimento público na nossa região está neste momento em curso: é a construção de um hospital. Isto diz tudo", afirmou ao jornal "Expresso". A "guerra" não é, porém, contra Viseu. "Esta não é uma questão de bairrismo, mas sim de justiça", diz João Teixeira, director do jornal "Voz de Lamego". Na opinião deste clérigo, Viseu é, aliás, um bom exemplo "daquilo que uma capital de distrito pode trazer a uma cidade e à região que a envolve". "O que se pretende é que deixem fazer em Lamego - e no Douro-Sul - o que tem sido feito em Viseu e à sua volta", argumenta. Acresce, continua João Teixeira, que "estes mais de 160 anos já se encarregaram de demonstrar que Viseu é um distrito geograficamente desproporcionado [possui 24 concelhos, o que faz dele o maior do país] e etnograficamente heterogéneo". Tão heterogéneo que, por isso mesmo, "não nos representa da melhor forma", acrescenta António Costa, presidente da Câmara de S. João da Pesqueira, o concelho duriense geograficamente mais afastado de Viseu. Mas não é pela distância que o autarca vê com bons olhos a criação do distrito de Lamego. Como frisava João Teixeira, com o IP3, "a distância deixou de ser um argumento". Para o autarca de S. João da Pesqueira, a principal virtude da separação de Viseu reside na possibilidade de criar "uma área com afinidades culturais", tendo como elemento matricial o Douro. Foi esse, de resto, o argumento invocado pelas autarquias do Douro-Sul para, no processo de regionalização, terem optado por integrar a região de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Sugerir correcção