Mergulho na alma Jaeger LeCoultre

Recorde-se: houve ou não um tempo na sua infância em que a curiosidade o atraía invariavelmente para o interior das coisas? E quantos relógios, apanhados esquecidos numa qualquer gaveta, "desmanchou"? Um grupo de jornalistas portugueses teve agora o privilégio de, pela primeira vez em mais de século e meio de história da manufactura, poder entrar na fábrica da Jaeger-LeCoultre, na Suíça, para desmanchar (não é assim tão difícil, apesar de tudo) e voltar a montar (aparente tarefa ciclópica) mecanismos daquela que é uma das marcas de maior prestígio no clube restrito da alta relojoaria mundial.A Jaeger-LeCoultre, a par da Vacheron Constantin e da Girard-Perregaux, reivindica para si o conceito de manufactura. Isto quer dizer que estas três casas ainda funcionam à moda antiga, fazendo na totalidade (ou quase) o relógio que sai da fábrica, desde as caixas aos movimentos, passando pelos mostradores.A aventura de dois dias à alma de um movimento Jaeger começa por uma iniciação aos mecanismos de um relógio simples, através do manuseamento de um cd-rom. Pelo método da tentativa, lá se foi aprendendo a desmontar, pela ordem certa, as dezenas de peças. No visor do computador, o programa ia dizendo se o caminho escolhido era o certo, ou se uma roda deveria sair antes da âncora e não depois. A rotina começou a instalar-se no cérebro dos neófitos, num reflexo pavloviano, e uma sessão de três horas bastou para memorizar visualmente, com poucas falhas, a maneira de desmontar, ciberneticamente, a máquina. Montar, pois é, basta seguir os passos ao contrário.No dia seguinte, as coisas mudaram de figura. Em bancas de trabalho, bata branca da Jaeger vestida, lente de relojoeiro assestada e luz potente apontada para uma verdadeira, e minúscula, máquina de relógio, os aprendizes foram desafiados a manusear ferramentas, a escolher delicadas chaves de fendas, a pegar em pinças como se de pauzinhos chineses se tratassem. Desmontar, alinhar peças e parafusos, voltar a montar.O mestre relojoeiro da Jaeger-LeCoultre ia tirando dúvidas, passando de banca em banca mas, de vez em quando, lá saltava para o desconhecido um minúsculo parafuso, lá se entortava o pinhão de uma roda dentada.Estranhamente, as máquinas foram mesmo desmontadas e montadas, com mais ou menos ajuda do mestre. Na filosofia Zen costuma dizer-se que ninguém poderá fazer considerações sobre a água de um lago enquanto não mergulhar nela. Na relojoaria, no mundo dos relógios, as coisas passam-se mais ou menos assim. Quando tiver oportunidade, peça ao seu relojoeiro que o deixe assistir à abertura de um mecanismo, à sua desmontagem e desmontagem. Perceberá a escala de tamanhos com que se está a lidar. A delicadeza de formas, nos relógios mais complicados e caros, a beleza de ornamentos em superfícies com menos de um centímetro quadrado.É no Vale de Joux, em pleno Jura Vaudois, que está instalada desde 1833 a manufactura Jaeger-LeCoultre. Foi esta a região de refúgio escolhida no séc. XVI pelos huguenotes franceses quando foram alvo de perseguições religiosas. Esta comunidade começou desde logo a dedicar-se, nos longos Invernos, sem contacto com o exterior, ao trabalho dos metais, à feitura de mecanismos de complicação - primeiro, caixas de música, autómatos, depois mecanismos de relojoaria. Vendiam depois estes últimos a relojoeiros franceses e ingleses. Foi assim até praticamente finais do séc. XIX.A família LeCoultre instalou-se em 1559 na aldeia de Le Sentier, para aí produzir primeiramente lâminas de barbear, depois teclados e caixas de música, finalmente, a partir de 1833, componentes relojoeiros de alta precisão. Em 1903, iniciou-se a relação com o fabricante de cronómetros Edmond Jaeger, oriundo da Alsácia, abrindo-se assim para a manufactura o mercado de luxo.Desde 1833 que a manufactura Jaeger-LeCoultre desenvolveu e fabricou mais de 250 movimentos relojoeiros. Muitos deles estão inscritos para sempre na história da relojoaria mundial: Futurematic (primeiro relógio automático com reserva de marcha e sem coroa de corda), Memovox (primeiro relógio de pulso despertador automático), Geophysic e Geomatic (cronómetros), o Extra-plano (datado de 1903, com 1,38 mm de espessura, este movimento mecânico continua a ser hoje recorde absoluto) ou o Calibre 101 (de 1929, ainda hoje o mais pequeno movimento mecânico jamais realizado). Nos anos 50, a manufactura desenvolve o conceito Master Control (todos os relógios desta linha passam um teste rigoroso de mil horas, ostentando depois um selo em ouro, no reverso).Mas a verdadeira imagem de marca da Jaeger-LeCoultre é exactamente a linha Reverso, iniciada em 1931. Grande clássico da arte deco, continua hoje a ser desenvolvido, nos seus diferentes modelos masculino e feminino, em aço, ouro ou platina, automáticos ou de grande complicação, decorados ou não. A ideia do Reverso surgiu de um pedido vindo da India britânica: os jogadores de pólo partiam com frequência os vidros dos seus mostradores Jaeger-LeCoultre. A solução foi criar um modo de poder esconder essa face do relógio, dando ao choque a parte do reverso, em metal. Empregando cerca de 800 pessoas, a Jaeger-LeCoultre fabrica anualmente 43 mil relógios de pulso, divididos apenas pelas linhas Master e Reverso.

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