A vida desta mulher não é um esgoto

Espreitar as bandas desenhadas de Ana Cortesão, ver-lhes as imagens e situações cruéis e imaginar um lado autobiográfico é uma tentação. E é um erro grosseiro. Também não há um exercício consciente de denúncia. Os desenhos vão-lhe saindo ao ritmo das encomendas. É uma observadora da vida. E a dela não é, de todo, um esgoto. Agora aconteceu-lhe um livro, pouco depois de lhe ter acontecido uma filha.

Ser (tanto quanto se sabe) a primeira autora portuguesa a publicar banda desenhada em formato de álbum, com capa a cores e tudo, não desperta em Ana Cortesão um entusiasmo especial, pelo menos visível. Até por esta divisão feminino/masculino lhe parecer muito pouco interessante.Já a existência física do livro é diferente - "sempre é um livro..." - também por ter resultado de um parto, editorial, mais longo do que aquele, físico, de que nasceu há oito meses a filha Catarina. Que não é nem podia ser um pormenor nas histórias ainda por construir, como mais para a frente se verá.Ana Cortesão tem 29 anos, é lisboeta (antes vivia na Linha e trabalhava em Lisboa, agora é ao contrário) e "A Minha Vida é um Esgoto" (ed. Baleia Azul) está fresco nas livrarias mas não é um inédito. Antes uma compilação "de praticamente tudo" o que produziu entre 1991 (ano da estreia, no DN Jovem) e finais do ano passado, sempre em sítios "mais marginais" (fanzines como AzulBD3 ou Bíblia) ou de acesso restrito. A satisfação pela existência do livro vem também desta maior "visibilidade".De 1991 a 1999 vão nove anos. E então se o "praticamente tudo" cabe em cinquenta páginas, quem está à nossa frente não tem propriamente um ritmo de produção alucinante. Certíssimo. Esclarecimento número um: "Faço BD só quando me pedem, não tenho vida para isso." Esclarecimento número dois, a explicar o desprendimento: "O ritmo de produção é condicionado por tudo, pela vida." A vida tem sido, além da própria vida, um curso de Arquitectura, que continua com um mestrado em Património (Núcleos Urbanos), o trabalho, num atelier de arquitectos, o casamento e agora a filha.Ana Cortesão não tem, pois, a pulsão do criador, não se lança febrilmente para o estirador noite após noite, a encher folhas em branco com personagens e histórias. Não. A angústia que sente é a dos prazos por respeitar. "Cumpro os compromissos", assegura, e por isso, quando as folhas do calendário começam a tombar vertiginosamente é que os problemas começam: "Às vezes ando uma, duas, três semanas angustiada e chego a um estado de nervos enorme." E depois, "quando faltam dois ou três dias sento-me ao estirador e aquilo sai". Até por que o trabalho não está todo por fazer. Dá-se o caso de algumas figuras da sua galeria - de monstros, nem ficaria mal dizê-lo - lhe nascerem espontaneamente de rabiscos avulsos durante um telefonema, por exemplo. A folha pode ser guardada ou deitada fora, mas a personagem já existe, pronta a usar e a viver numa história ou numa situação apropriada."Escrevo os textos e as personagens vão-se formando na cabeça. Só tomo nota das coisas essenciais." Mas os pormenores, que abundam, são coisas do momento, com que a tinta da china vai sujando as folhas A3 em papel cavalinho ("no princípio até era papel de máquina"), ou o acrílico e o guache vão colorindo as telas.O resultado é exuberante e feio - mesmo quem gosta muito não poderá rejeitar a palavra, lendo-a de outra maneira. Ana Cortesão leva-nos pela mão a ver uma procissão de portugueses feios, porcos, maus. Um catálogo de tristes, deprimidos, infelizes, preconceituosos, novos ricos, vazios. Da tasca fadista do Bairro Alto abatida pelos tempos ao suicídio como fuga "corajosa" ao casamento que devia ser feliz para sempre; da fuga ao real via tv e net às emancipadas de hoje ainda escravizadas pelos maridos e famílias.Isto é uma crítica social consciente? No prefácio a "A Minha Vida é um Esgoto", João Paulo Cotrim escreve: "Na linha mais autobiográfica de Roberta Gregory e Julie Doucet o universo feminino é, mais do que retratado ou cantado, sofrido por Ana Cortesão, ao mesmo tempo, com intimidade dorida e distanciamento irónico. A ironia é um vírus, que se multiplica com doentia facilidade num ambiente de irrisão oriundo da bd underground dos anos 60 e seguintes. A felicidadezinha que se busca na selva de um quotidiano medonho de tão normalizante é a principal fonte de miséria.""O texto é muito giro e a análise está muito bem feita, mas não racionalizo isso. Até que ponto um artista [a ela faz um bocadinho de impressão que a palavra possa ser usada a seu respeito] tem consciência daquilo que faz? Eu faço as minhas coisas muito inconscientemente."Mas também sabe que, seja qual for o grau de consciência, "estas coisas [as feias e tristes] existem". Agora, há duas coisas que é preciso deixar bem claras. Primeira: "Não quero dar lições de moral a ninguém." E segunda: "As pessoas que me conhecem acham que eu não tenho nada que ver com as minhas BDs." Leve encolher de ombros: "Não sou maníaco-depressiva nem nada..." (Até o título do álbum, vem agora a propósito dizer, nasceu de uma frase "dita a brincar" por uma colega, numa noite absolutamente normal, tirando o excesso de trabalho e de chuva.)"Estas coisas existem", sim, e as influências? "Vamos criando um estilo, mas há sempre influências, é tudo processado e transformado. Viajava imenso, fazia interails, lia muita bd espanhola, agrada-me muito, comprava tudo."As histórias de Ana Cortesão desprendem um perfume de mulher sem tresandarem a feminismo. Para ela, a divisão homens/mulheres é pouco interessante como tema de debate, é quase mais um facto da vida. Mas é inegável que as autoras de bd são uma espécie rara, e então porquê? Hipóteses: "Os homens talvez gostem mais. Talvez tenham mais capacidade de apreciar este género de expressão artística. Não conheço muitas mulheres que gostem de bd... Mas é possível que, agora, quando cada vez mais mulheres fazem mais coisas, tudo mude."Mudança é também qualquer coisa que Ana Cortesão sente em si e a projectar-se no seu trabalho. Já aconteceu isso nas duas criações mais recentes (fora do álbum), um "tratado sobre shoppings" para uma exposição no Centro Comercial dos Olivais, e uma bd para a série sobre o 25 de Abril que o PÚBLICO divulga até ao fim deste ano. Na do "25 de Abril" havia bebés e não podia ser por acaso, a filha tinha nascido e bebés eram a coisa em que ela pensava mais."Acho que estou a ficar um bocado mais mole. As minhas personagens não estão tão agressivas", resume. A culpa é, mais uma vez, "da vida", e aqui inclui-se, como é evidente, a filha. Um quase-lamento: "Eu tenho pena de perder a minha faceta mais rebelde." Uma dúvida: "Não sei muito bem qual vai ser o meu percurso." E uma certeza, a de que os trabalhos de Ana Cortesão hão-de ser cada vez mais raros: "Faço isto por prazer, como qualquer hobby. Só farei mais se for para publicar num sítio giro." O próximo "esgoto" vai demorar e os seus habitantes serão monstros menos cruéis e torturados do que estes, habitantes de uma vida passada. Serão ainda monstros?

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