Todas as paixões serão tatuadas

Inédita em Portugal, "Rosa Tatuada" chega ao Politeama através de Filipe La Féria. A peça que Amália e Laura Alves queriam protagonizar celebra, agora, Rita Ribeiro. E também João Baião, transfigurado num deus coroado de rosas.

O "esplendor" não será na relva. Quatro dias antes de Filipe La Féria apresentar a sua nova encenação, os corredores do Politeama estavam cheios de areia. Lá dentro, o palco parece uma praia. Com efeito, o cenário de "Rosa Tatuada" encontra-se virado para o mar. Há uma casa, construída com ripas, como uma jaula, e por trás um pontão suspenso a cinco metros de altura, tudo ladeado por palmeiras. "É uma homenagem ao cinema", explica La Féria: "O público vai ficar com a sensação de ver um filme em cinemascope. Tem muito o ambiente dos filmes que adaptavam as peças de Tennessee Williams. Este cenário podia ser o de um estúdio de cinema". "Rosa Tatuada", que na versão cinematográfica valeu um Óscar a Anna Magnani, podia também ser uma homenagem a Laura Alves e a Amália (tema da próxima encenação de La Féria), que pretendiam interpretar a peça, inédita até hoje no teatro português. Mas acaba por celebrar Rita Ribeiro, numa viragem a 180 graus da sua carreira desde que protagonizou "Maria Callas". E a actriz sabe disso: "Isto é um brinde, é a minha prenda de 25 anos de carreira. Tem tudo, é um exercício de representação extraordinário". O encenador explica que "é um papel que requer uma actriz nas suas qualidades máximas", enquanto Rita Ribeiro assinala a oportunidade "de representar todas as mulheres numa só", acrescentando: "A Maria Callas foi a transmutação para tudo isto que me está a acontecer. Deu-me um grande sinal e disse-o várias vezes: era a primeira de grandes peças que ia fazer". Com efeito, a personagem de Serafina Delle Rose é a esposa apaixonada e depois viúva, a mãe castradora, a mãe libertadora e a mulher que se redescobre enquanto amante. Como explica Tito Lívio, responsável pela dramaturgia, "ela distingue-se das outras mulheres porque ama o marido de forma profundamente sexual, vê-o como um deus. Ela diz: a minha casa é a minha igreja e a minha cama o meu altar".Serafina é também uma mulher que acredita nos símbolos: julga que fala com a Virgem, o seu marido, Rosário, tem uma rosa tatuada no peito e o nome da filha é Rosa. Descobre que está grávida depois de ver também uma rosa "tatuada" no seu peito e quando conhece Álvaro Mangicavallo (João Baião) reencontra nele os sinais do marido morto. Álvaro é um camionista que transporta bananas, tem o mesmo corpo atlético de Rosário e até uma rosa tatuada. "Rosa Tatuada", segundo Lívio, "põe em cena o mito de Díonisios, o Deus grego da sucessão das estações, do dia e da noite". Mangicavallo simboliza, assim, o "Deus coroado de rosas", que salva uma mulher, Serafina, que depois de enviuvar "vive com o coração fechado dentro das suas cinzas", que mantém numa urna em cima de uma cómoda. "O marido ressurge depois noutro outro homem [Mangicavallo] com o mesmo corpo e a mesma profissão e resgata-a de novo para a vida, trazendo-a da sombra para o sol". "Big" Baião enquanto Díonisios? "Pensei que era um grande desafio para o João", responde La Féria: "Sempre acreditei nele como actor, muito distante da imagem televisiva que o grande público conhece".Quanto à escolha do texto, continua o encenador, cenografista, figurinista e tradutor da peça: "É um texto sobre a solidão, ao fim e ao cabo o grande tema de Tennessee Williams. Tem muito a ver, neste ano de 1999, com estes guetos que em Lisboa tanto sentimos, dos retornados, de pessoas que vieram de outras terras e vivem na sua solidão. É uma peça sobre a solidão tratada de forma muito original, porque é a única peça de Tennessee Williams que é uma tragédia optimista, a única que escreveu com um final feliz. Na sua restante dramaturgia todos os fins são terríveis. A vida é sempre dada com uma enorme crueldade".Segundo Tito Lívio, "Rosa Tatuada" foi a peça de amor do dramaturgo para o mundo: "Ele estava em Itália, sentia-se lá muito bem e estava muito apaixonado, por Frank Di Merlo".Nesta transposição, La Féria procura os ecos de toda a obra do autor americano: "Ele fazia quase sempre as mesmas personagens, todas elas cabem num ciclo quase fechado e por vezes há ecos de outras peças nestas personagens". "O Álvaro Mangicavallo é um parente dos protagonistas de 'Um Eléctrico Chamado Desejo' e de 'Gata em Telhado de Zinco Quente'. São animais com medo. Como Tennessee Williams diz na voz de Serafina: 'Sou um animal perdido'. Esse mundo de fugitivos, que quisemos completar pela dramaturgia, é uma leitura distanciada de um autor de que já conhecemos a totalidade do universo". E se em cada personagem se esconde um animal, cabras e cobras passeiam-se pela areia do cenário. A natureza impera "como uma força que subjuga o próprio homem, o seu destino inelutável". "Há nesta peça um diálogo com Deus", continua La Féria. "Quando duas pessoas se amam encontram Deus, esse Deus que Tennessee, pela sua formação e pela história da sua infância, abjura e ao mesmo tempo encontra". O mesmo Deus que observa através do seu olho que é sol, e do qual os amantes se refugiam.Mas nem só Deus observa. Numa casa sem paredes, apoiada em estacas, toda a vizinhança espia. "Este lado voyeur que dou à personagem de Rocha Santos (o vagabundo) e de Maria Vieira (Strega, o primeiro papel dramático da comediante, em 18 anos de carreira) é quase o coro que comenta a tragédia, eles próprios são personagens típicas de Williams". Ninguém consegue esconder-se neste "jardim zoológico de cristal", onde as paixões são reprimidas ou violentamente punidas. Tudo se pode ver. "Quando Tennessee Williams era miúdo", conta La Féria, "a irmã tinha um jardim zoológico, que lhe dava essa perversão sexual do voyeur".

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