O asceta do tecno

Que produtor da música tecno consegue ser simultaneamente apelativo em cosmopolitas galerias de arte e em festas para milhares de pessoas? A resposta é Richie Hawtin, mais conhecido por Plastikman. Com um álbum-compilação novo, intitulado "Decks, EFX & 909", o produtor e DJ canadiano desde sempre ligado ao tecno de Detroit vai actuar segunda-feira na festa Tecnolandia, em Aveiro.

É uma verdade "la palisse", mas de vez em quando convém lembrá-la: a forma como se projecta um determinado olhar para um objecto artístico é determinante para a avaliação que se faz do mesmo. Tal como um desprevenido visitante de uma exposição de Jackson Pollock tenderá a considerar incompreensíveis as obras abstractas que tem defronte de si, também quem não entende os signos, a história, os protagonistas e a música tecno tenderá a ver o fenómeno com um olhar simplista e uniformizador. O canadiano Richie Hawtin, conhecido também por pseudónimos como Plastikman, F.U.S.E., From Within, Concept, Circuit Breaker ou States Of Mind, é a prova de que a música tecno é um universo aberto às mais díspares interpretações. Só assim se compreende que seja no momento actual um dos mais inconformados e experimentais produtores tecno e que a sua música ilustre exposições de artes plásticas e, simultaneamente, continue a ser um dos disc-jockeys preferidos por multidões ao redor do mundo, Portugal inclusive.Inglês, mas a viver deste tenra idade em Windsor, no Canadá (junto à fronteira com os EUA e a cinco minutos do centro de Detroit), Richie Hawtin é um asceta do tecno. Como o próprio reconhece, em todas as suas produções existe um rigor e um minimalismo obsessivos que se projectam numa música abstracta e asfixiante. O ano passado, através dos álbuns "Consumed" e "Concept", Plastikman propunha um universo anti-natural, introspectivo e negro. Agora, com a compilação de temas misturados "Decks, EFX & 909" é o regresso à pista de dança. "Não é fácil descrever este disco. Diria que é mais do que um CD-misturado, mas também não é o reflexo de uma simples actuação ao vivo. Está entre os dois planos: situa-se algures entre as minhas performances como DJ e as produções que faço em estúdio, porque coloquei muita informação extra, caixas de ritmo e alguns efeitos que a maior parte dos produtores e DJs não utiliza. Reflecte aquilo que faço nos clubes nocturnos e nas festas em todo o mundo por onde actuo. É suposto que a música electrónica consiga dar passos decisivos em frente e é por isso que tentei fazer algo diferente. Estou saturado das compilações misturadas por DJs, porque reflectem alguma falta de imaginação. Eu parto do mesmo pressuposto - misturar temas e artistas diferentes - mas utilizo ideias de produção da minha autoria"."É natural que depois de mais de dez anos a fazer música electrónica, muitas pessoas repitam as mesmas ideias. No princípio era mais fácil ser-se original porque estava tudo por descobrir, depois a vertente técnica transformou-se na grande obsessão - como fazer o quê e de que forma? Hoje em dia, ao lado das evoluções técnicas que permitem que cada um faça música de maneiras diferentes existe outra vez uma atenção à vertente estética. A verdade é que continua quase tudo por fazer no campo da moderna música electrónica. Enquanto o cinema ou as artes plásticas já realizaram uma reflexão interior sobre os processos de criação, na música essa reflexão ainda continua por fazer. Essa é uma das razões que explica o olhar pouco atractivo que muita gente lança sobre a música electrónica. Existe a ideia de que é música feita por computadores. Não é verdade: é música feita por pessoas que recorrem a diversas técnicas, entre elas os computadores"."No final dos anos 80 e princípio dos 90, existia uma grande energia em Detroit que foi canalizada para a concretização de novas ideias acerca da música electrónica. Desde esses tempos que Detroit funcionou como ponto de referência, mas a 'mensagem' foi de tal forma disseminada pelo resto do planeta que esta música já não pertence a nenhuma cidade ou país. Recordo-me que quando descobri esta música tive uma espécie de choque: tudo era novo para mim, até a forma de a dançar. Entretanto foram-se criando alguns constrangimentos e talvez seja o momento ideal para reintroduzir o risco, o prazer de escutar e de imaginar o futuro. O álbum do Carl Craig é um dos meus discos preferidos deste ano. O Carl mistura referências do passado e do presente, imaginando aquilo que poderá ser o futuro. Ele foi sempre muito influenciado pelo jazz e 'Programmed' funciona como uma progressão natural do seu trabalho". "Como em qualquer outra arte, a inspiração para fazer música electrónica surge da vida e da forma como cada qual a desfruta: as cores, os sons, os cheiros, as viagens, as paisagens, as pessoas, as zangas com a família, etc. A maior parte das pessoas acha que a única coisa que nos inspira são computadores e avanços tecnológicos. Esse tipo de coisas é importante porque a música electrónica é o género musical que mais acompanha e reflecte os avanços da tecnologia, mas os computadores não funcionam sem vida. A minha música reflecte o mundo contemporâneo e, por reflexo, a minha vida e o meu olhar sobre esse mesmo universo"."Não existe contradição nenhuma entre experimentar e tentar arquitectar novas sonoridades durante o dia em estúdio e, à noite, apresentá-las para um público que quer dançar. A ideia de que tudo o que é dançável é imediato é um preconceito. Por outro lado, existe uma relação física com a música que não é a mesma para todas as pessoas. Dançar é uma forma de expressão e é interessante perceber as diversas interpretações que atribuem à tua música. Quando faço música limito-me a apresentar propostas novas, independentemente de ela poder ser ouvida ou não nas pistas de dança. A música não é boa ou má, apenas por ser arquitectada para um determinado ambiente.""Num futuro próximo penso incorporar elementos visuais nas minhas performances. Nunca tentei fazer instalações, escultura ou pintura, mas por outro lado, estou cada vez mais interessado em alguma arte contemporânea. Esculpir o som e pintar com frequências é igualmente estimulante e penso que existem pontos de contacto entre estas diversas artes. Nos últimos anos tenho acompanhado a actividade de artistas de Nova Iorque como Barnett Newman ou Robert Reiner, mas em Inglaterra também existem artistas minimalistas interessantes como Anish Kapoor. Nos meus últimos álbuns, 'Consumed' e 'Concept 1' existe a mesma vontade de conciliar ritmos, materiais e tonalidades que são desconfortáveis. Gosto da sensualidade e da beleza misturadas com uma certa tensão brutal e vulgar".

Sugerir correcção