Mobilização total na Praça Timor

Os dias mudaram. São dias inteiros. "Valem uma vida". Duas semanas de manifestações criaram verdadeiros veteranos da causa timorense. Profissionais da indignação. Resistentes. "Passo aqui a noite". Os portugueses saíram à rua e encontraram um sítio novo que faltava viver: a Praça Timor.

São duas da manhã de segunda-feira e Catarina esconde as mãos do primeiro frio de Outono dentro das mangas da camisola. Assim encolhida no banco, parece tão sem forças como as velas que, abandonadas no pavimento, extinguem as suas chamas em pequenos vulcões de cera. "Desde terça-feira que passo aqui a noite. Depois vou a casa dormir duas ou três horas antes de ir para o emprego". A semana ainda não começou e Catarina, jurista, já sabe que vai produzir pouco. "O que vale é que o chefe está de férias..." Catarina não é preguiçosa: encontra-se apenas em estado de excepção. Está ali por Timor Lorosae e continuará "até que eles sejam livres".Catarina, como muitas outras pessoas por todo o país, aderiu à causa timorense de uma forma total, com uma solidariedade radical que não tem horários, compromissos, cansaços. Ali, em frente à representação das Nações Unidas em Lisboa, faz vigílias sucessivas por Timor Lorosae, o novo nome para um novo país. "Se não é agora, quando é?"São novos territórios, aliás, os que a jovem Catarina descobriu pela solidariedade: um Timor tão próximo como aquilo que é íntimo e um Portugal que ela desconhecia tão generoso, a começar em si própria. E também o seu sítio de acção, o ponto onde volta para estar presente: uma fatia de cidade por baptizar, aquele triângulo de jardim que fica entre o hotel Sheraton, a maternidade de Alfredo da Costa e o início da Avenida 5 de Outubro. "Este bocado aqui não tem nome", reparou Paulo, o namorado que acompanha Catarina nesta sentinela às horas mortas da grande mobilização. "Amanhã vamos fazer um cartaz igual às placas toponímicas para afixar mesmo aqui numa parede: Praça Timor. É um nome que faz sentido". A meio da madrugada, anónimos que ela também não vai conhecer passam por uma loja de conveniência para comprar comida e bebidas que deixam ali, "para vocês que estão aqui toda a noite."Na Praça Timor - cemitério e altar, memorial e instalação, estendal e monumento de objectos efémeros -, há versos espalhados pelos cartões e fotocópias: "No buraco escuro do esquecimento/ soaram palavras, que foram ouvidas/ intensamente ouvidas". No turbilhão de iniciativas que exigem uma intervenção internacional em Timor, há gente que de súbito quase profissionalizou a sua indignação, trabalhando, dormindo, comendo e respirando campanha, fazendo das acções de protesto um único dia completo e inteiro, perpétuo até se conseguir empenar a engrenagem de terror indonésia.A madrugada é dos resistentes. Prolonga a euforia das grandes marchas, dos minutos de silêncio, das paralisações, dos cordões humanos. Ana Marques, "estudante pré-universitária" que por estes dias devia andar preocupada com os estudos, chegou de Viseu na quarta-feira e desaguou directamente para a grande manifestação desse dia em Lisboa. "Depois continuei o protesto noutros sítios da cidade. Quando cheguei a casa eram seis da manhã e no dia seguinte também".Ela e o grupo de amigos palmilharam todas as grandes estações da campanha por Timor, das Nações Unidas à embaixada dos EUA sem outra ocupação, até chegarem, sábado à noite, ao concerto do Parque das Nações. "Não foi nenhum sacrifício". Ana não acredita que esta dedicação e persistência influencie alguma coisa as decisões importantes. "Não fui a Madrid" berrar à frente da embaixada da Indonésia "porque tive de repente uma enorme falta de esperança." Mas continua mobilizada porque "o que se pode fazer é estar presente e acalmar o espírito dos timorenses."De qualquer forma, não está sozinha: "Começam a conhecer-se as caras dos que também andam de uma manifestação para outra. Não se troca telefones ou moradas ou assim, mas faz-se amigos." Ana e o grupo tentaram sempre "movimentar-se". Na maior parte dos sítios encontraram timorenses. "Apesar da tragédia que se vive, são muito alegres. Havia timorenses a tocar viola, aprendemos músicas timorenses." "Conhecemos pessoas novas mas por enquanto as coisas ainda estão a acontecer. Esperamos fazer uma grande festa no fim disto tudo", explica Catarina."Foi a semana mais longa da minha vida", dizia Paulo Afonso, presidente da mesa da Associação Académica de Lisboa, num corredor da Reitoria da Universidade Clássica, enquanto na Alameda desfilavam cantores, bandas, apresentadores e personalidades num mega-concerto por Timor. Paulo ajudou a colocar a iniciativa de pé. "Estes dias desmentem que a juventude portuguesa não tenha valores. Isto é a prova de que não existe nenhuma geração rasca. A juventude é generosa como alguma vez o foi. Muitas vezes não há é espaço para o demonstrar".Felix, vice-presidente da direcção da AAL, também vive dias "que valem uma vida". Muitos estudantes universitários têm exames de segunda época. "Mas os meus pais agora só se preocupam se eu estou a comer e a dormir o suficiente." Felix começou no associativismo por causa do massacre de Santa Cruz, em 1991. Na vertigem de, em menos de uma semana, levantar um concerto que se prolongou por horas, ambos confirmaram uma suspeita: "Os partidos e suas juventudes não têm o monopólio da luta política."A intensidade do momento é grande, enorme, inédita. "É um segundo 25 de Abril, mas ainda com mais unanimidade", resumiu um homem que há 24 anos não descia à rua para gritar. "Esta minha filha de sete anos aprendeu agora a cantar o Hino Nacional em frente às Nações Unidas". À sua frente, os Xanadu e os Valentinos cruzam-se em palco com Margarida Mercês de Melo rezando uma Avé Maria para a multidão.Com apenas alguns dias de luta, alguns activistas comportam-se como insuspeitos veteranos da causa timorense. Paulo, que na junta de freguesia de Benfica dinamiza as relações com associações culturais e desportivas, começou a semana passada a gastar as noites e madrugadas no portão da embaixada dos EUA em Lisboa - "o meu trabalho é só da parte da tarde". É o seu carro, estacionado em frente aos polícias que fazem a segurança do lado de dentro do portão, que segura as horas intermináveis de um pequeno grupo de pessoas com as notícias que Timor, por uma telefonia sem fios, debita a cada instante a partir de vários pontos do Globo, ao ritmo dos fusos horários: Díli e Jacarta, Lisboa e Bruxelas, Nova Iorque e Washington."Eu já este ano tinha entrado em manifestações, as que eram contra a intervenção [da NATO] no Kosovo, porque não devia ter sido feita daquela forma", explica o jovem funcionário. Os vidros do carro estão cobertos de fotocópias com slogans e cruzes por Timor e o "tablier", cheio de velas em copo, parece um altar mexicano aos mortos. "É por causa do vento". O som da TSF, em alto volume, chega dessas velas vermelhas e amarelas para se misturar com o crepitar de uma fogueira que, à entrada da embaixada, vai consumindo os despojos do dia - cartazes, papelada, um fato-macaco que metaforiza no asfalto um soldado indonésio, lixo que um timorense pica e recolhe em volta, imutável, para entregar às chamas com a ajuda de um pau comprido.Nelson, o timorense, assegura nessa noite a vigília em nome dos seus - é ele uma espécie de embaixador do seu povo naquele portão que guarda outros diplomatas que dormem. Ele, que faz parte de duas bandas, Laloram Timor e Lorico Timor, tem uma guitarra para enfrentar a noite. E compõe: "No início éramos um só/ Um só corpo uma só voz/ Sem querer ser deslocados/ Tenho saudades do passado." Lorico significa papagaio, o símbolo dos jovens em Timor.A Nelson - como a todos - surpreendeu este tipo de adesão colectiva. A febre solidária não aconteceu apenas nas grandes manifestações. Outras vidas ficaram do avesso sem vir nas imagens das acções de rua. Lurdes Martins, um exemplo em Faro: "Balúrdios em telefone, telemóvel, faxes, emails, compra de panos para faixas, compra de cartolinas para cartazes a distribuir por Faro a toda a gente, recolha de endereços e difusão pela Net, discussões acaloradas, sobretudo com os que achavam que não havia nada a fazer, início das primeiras vigílias junto de espectáculos, composição, fotocópias e distribuição de textos sobre o assunto pela cidade, cartas/faxes/emailes-tipo com destinatários, abaixo-assinados, sensibilização no IRC onde as pessoas insistiam na conversa da treta e do engate, greve de fome, greve de tabaco (esta era por ser por tempo indeterminado, mas só consegui chegar às 40 horas), noites sem dormir suspensa da actividade e das notícias, já nem me lembro... Cancelamento de encontros de trabalho, muito dinheiro gasto e nenhum recebido e para quê? Estou sem dinheiro e Timor continua a morrer."Sem alterar os ritmos, outros fazem cortes espectaculares com as rotinas. Às horas a que apenas os mais dedicados continuam de vigília, várias discotecas de Lisboa cumpriram três minutos de silêncio, no fim-de-semana passado, acertando no pico da noite o passo com uma manifestação poderosa que o país cumpriu em pleno dia. Às três da manhã, no Cais do Sodré, nas Docas e na 24 de Julho, a música calou-se e Timor foi, de forma bizarra, causa comum de uma clientela tão diversa como a do T-Clube e Kings and Queens, Indochina ou Tóquio, Blue's Caffe ou Kremlin.A ideia foi de Armando Oliveira, da discoteca Jamaica, que já noites antes "tinha interrompido o 'reggae' com o 'Por Timor'". "O que foi diferente é que senti que as pessoas estavam ali paradas mas a viver alguma coisa", explicou o proprietário. "Timor está a tocar toda a gente. Nunca pensei que conseguíssemos esta iniciativa". Mesmo que o Jamaica tenha acabado a noite "com uma senhora aos gritos porque pela primeira vez não havia 'valsa' no fecho, porque usei os Trovante. Mas já não era ela a falar." Por estes dias, Armando Oliveira viu outra manifestação espantosa: dois amigos que vestem invariável e rigorosamente de preto apareceram-lhe com estética de protesto, de luto: "O branco fica-vos maravilhosamente!"A Praça Timor foi muito longe, atingiu locais insuspeitos. Conseguiu, por exemplo, sabotar a ordem eterna de uma biblioteca. "Se esquecer o horror da situação, devo dizer que o número dos leitores de jornais aumentou em cerca de 100 por cento ou mais e os restantes utilizadores tinham dificuldade em concentrar-se nas suas tarefas normais", conta Isabel Costa, da Biblioteca Municipal de Ponte de Lima. "Quanto aos funcionários, nunca o e-mail foi tão utilizado: enviaram-se mensagens para tudo o que era entidade com responsabilidade no assunto."Menos visível que as enchentes de manifestantes nas Avenidas Novas ou nos Aliados, a "guerrilha" online mobilizou milhares de pessoas que, dias inteiros, enviam mensagens, imagens, apelos e informação sobre Timor. Francisco Godinho, engenheiro da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro que criou na rede um observatório de activismo online, constatou a dispersão de muitos desses esforços e decidiu dinamizar um cordão humano na Internet. A sua mailing list por Timor teve, em apenas três dias, quase 500 entradas. Detalhe relevante: "As pessoas não se identificam, em geral, e não nos conhecemos uns aos outros, mas há quem, pelo teor das mensagens, se nota que divulga informações de ministérios e de embaixadas onde trabalha."Francisco Godinho sabe o poder deste novo tipo de activismo: em menos de um ano, conseguiu levar ao Parlamento e ao conselho de ministros legislação pioneira sobre acessibilidade dos deficientes à informação disponibilizada pela administração pública. Ele e outra pessoa conseguiram reunir 50 mil assinaturas - algo que teria sido quase impossível numa petição tradicional. Como ficou provado na mobilização por Timor, "a Net é também um meio muito eficaz para reunir aqueles que não podem sair à rua mas que querem entrar na campanha", além, é claro, de possibilitar que alguém a um computador em Vila Real seja mais útil nos protestos do que um manifestante a gritar palavras de ordem na Baixa de Lisboa.O sociólogo Boaventura de Sousa Santos, olhando para o fenómeno da mobilização portuguesa por Timor, salienta que "foi a primeira vez no nosso país que usámos os meios da Net e fizemo-lo muito bem porque se criou uma rede mundial", algo que o investigador considera que vai ficar para outras lutas. O director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra acrescenta, aliás, que "a sociedade civil mostrou que está mais organizada do que os próprios sociólogos pensavam", embora seja impossível dizer se os portugueses estarão dispostos a um envolvimento tão generoso por outra causa. "Um dos problemas dos novos movimentos sociais é aglutinarem-se em torno de causas únicas, de uma questão que, quando é resolvida, se desfaz.""Lembra-me um pouco a morte de Diana em Inglaterra - no limiar da histeria mas totalmente necessária para um povo se juntar e mostrar os seus sentimentos extremamente fortes", explica Nicola Jane Joseph, apanhado em plenas manifestações a usar roupa branca, a pendurar lençóis à janela e a enviar correio electrónico por Timor "à esquerda, direita e centro. A questão é: porque precisa uma nação de algo assim para se unir?"Boaventura de Sousa Santos, que não vê "fantasmas do Império", responder-lhe-ia que "entre as várias razões que convergem nesta mobilização, existe uma subtil e subterrânea relação dos portugueses com os timorenses que é esta de gente culturalmente diferente e territorialmente distante falar a nossa língua", que marca a distância com a relação de Portugal com Macau. "Como em Timor, nós não acautelámos suficientemente a defesa dos direitos e do futuro dos macaenses e chineses de Macau. Será que teremos o mesmo empenho se precisarmos de os defender?"Na Praça Timor, nos vários sítios - gente - que merece esse nome, fica "uma grande lição e um aviso para os políticos, que não têm dado atenção à opinião pública porque pensam que a podem manipular facilmente. Cuidado: a opinião pode virar-se contra eles porque a democracia é muito mais exigente". Emília, um dos milhares de pessoas que na Reitoria assistiu à reunião dos Trovante em palco para cantar o hino das manifestações, lembrou-se, emocionada, do fim do "Manifesto Futurista" de Almada Negreiros: "Coragem, portugueses, já só vos faltam as qualidades." "Será que finalmente as temos?" No colo tinha um bebé de escassos dois meses, embrulhado num "babygrow" branco onde a mãe escreveu, a marcador, "Indonesians fuck off".

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