Um festival para fazer soar os órgãos

Durante as próximas semanas Lisboa vai converter-se na capital do órgão. Intérpretes nacionais e estrangeiros farão soar alguns dos mais belos órgãos portugueses. Além dos músicos e da música, são estes as estrelas - mais precisamente cinco - de um festival que testemunha o interesse crescente por um instrumento marginal na nossa vida musical.

O prelúdio que transformará Lisboa na capital do órgão soará hoje, na Sé Patriarcal, às 21h30. Os organistas António Duarte, João Vaz e Antoine Sibertin-Blanc e o Coro Solemnis, dirigido por João Crisóstemo, são os intérpretes do concerto de abertura do II Festival Internacional de Órgão de Lisboa. O prelúdio intitula-se "O canto gregoriano na música para órgão", mas a programação rica e variada prolongar-se-á até 3 de Outubro e promete mostrar várias facetas do instrumento e da literatura musical das principais escolas europeias.A ideia de organizar um festival de órgão paira há muito no espírito dos intérpretes portugueses. "Em 1994, quando Lisboa foi capital europeia da cultura, realizou-se um ciclo que pretendia dar a conhecer os órgãos da cidade e arredores. A adesão do público foi excelente. Pensámos imediatamente em criar um festival", contou ao PÚBLICO António Duarte, que reparte com João Vaz, as funções de director artístico desta iniciativa. A morte de Joaquim Simões da Hora, outro importante organista português e um dos mentores do projecto inicial, acabaria por originar um interregno. Mas em 1997, na sequência da participação de António Duarte e João Vaz no Festival de Toulouse, a ideia voltou a ganhar corpo e o primeiro festival teve lugar no ano passado. "Toulouse é uma das grandes capitais do órgão. Fizémos muitos contactos. Em 1998 dedicou o seu festival ao órgão ibérico e aproveitámos para fazer nesse ano um intercâmbio. Como contrapartida, a primeira edição do festival de Lisboa centrou-se na música e nos intérpretes franceses. Em Toulouse venderam mesmo uma assinatura que incluía uma viagem a Lisboa."Este ano o destaque vai para a música alemã, que ocupa quatro dos doze concertos do festival: "Johann Sebastian Bach", "A escola do norte da Europa", "O órgão romântico alemão" e "A escola do sul da Alemanha" são algumas das temáticas escolhidas, mas a programação abarca outras escolas como a francesa ou a ibérica num período temporal que se estende da Idade Média ao século XX. "Além do órgão a solo pretendemos mostrar a sua utilização noutros contextos. Por exemplo, em conjunto com a música coral ou com orquestra." É o caso do concerto do dia 24, em que o Coro do Conservatório de Tomar interpretará Fauré, Poulenc e Franck na Igreja de São Luís dos Franceses, dos concertos para órgão de Haendel com a orquestra Capela Real (dia 18, na Basílica da Estrela) ou do concerto de encerramento, com a Orquestra Metropolitana de Lisboa. Neste último, serão tocadas duas obras raramente ouvidas entre nós: o Concerto para Órgão de Haydn e a Sinfonia nº3 'com órgão' de Saint-Saëns. O festival, que é produzido pela Juventude Musical Portuguesa e pela câmara, inclui ainda um concerto pelos Segréis de Lisboa ("Os Motetes da Semana Santa em Goa") com obras em primeira audição em Portugal (dia 17, na Igreja da Graça) e duas conferências no Palácio Galveias, respectivamente a cargo do musicólogo Rui Vieira Nery (dia 17, às 18 h) e do organista José Luis Uriol (dia 1, às 18 h).Todas as actividades têm entrada livre.As grandes estrelas de um festival de órgão são os próprios instrumentos. Lisboa possui um património organístico de inegável valor artístico que a coloca no roteiro das grandes cidades europeias com órgãos históricos, entre as quais se incluem Alkmaar (Holanda), Innsbrück (Áustria), Roskilde (Dinamarca), Saragoça (Espanha) ou Treviso (Itália).Além dos órgãos da Sé Patriarcal e da Igreja de São Vicente de Fora, invariavelmente presentes em certames desta natureza, o festival dará a conhecer as potencialidades de instrumentos menos utilizados como o órgão de coro da Basílica da Estrela (construído no século XVIII por António Machado e Cerveira e inaugurado este ano na sequência do restauro de Dinarte Machado) e do órgão do Conservatório Nacional, recentemente restaurado pelo mesmo organeiro. "É um órgão que está num auditório e não numa igreja. Pareceu-nos ideal para um concerto de música de câmara", explicou António Duarte. No dia 30 poderemos ouvir a sua sonoridade combinar-se com o oboé de José Coutinho e o violoncelo de Emídio Coutinho, na interpretação de peças de Vivaldi, Bach, Haendel e Telemann. O quinto instrumento presente no festival foi escolhido a pretexto de uma efeméride - o centenário da morte do organeiro francês Aristide Cavaillé-Coll (1811-1899), figura crucial no desenvolvimento do órgão romântico e autor do órgão da igreja de São Luís dos Franceses.Nas últimas décadas, graças à intervenção do Estado e de algumas instituições privadas como a Fundação Gulbenkian, tem-se assistido à recuperação de um grande número de órgãos históricos, mas há ainda muito por fazer. Entre os órgãos mais valiosos de Lisboa que ainda não foram restaurados António Duarte salienta o da Igreja dos Mártires, "porventura o órgão barroco mais importante de Lisboa", o da igreja de Santa Catarina e o órgão principal da Basílica da Estrela.A selecção dos órgãos para cada concerto passa também pelas características da música. "Em São Vicente de Fora e na Estrela tocam geralmente pessoas conhecedoras dos instrumentos e da música antiga. Estes órgãos não têm pedaleira, uma particularidade peculiar à escola ibérica. As peças têm de ser escolhidas em função disso. Pelo contrário, o órgão da Sé pode servir um repertório mais eclético. É um instrumento de 1964, que conjuga características barrocas e românticas."Na opinião de António Duarte, o interesse pelo órgão tem vindo a crescer. "Este festival é também um sinal de mudança. Há anos atrás não teria qualquer aceitação. Verifica-se um contraste curioso entre o interesse do público e o estatuto marginal do órgão na nossa vida musical. A Antena 2 raramente passa música de órgão, os festivais não o costumam incluir na sua programação... Paradoxalmente, os concertos do ano passado estavam sempre cheios (a audiência total rondou os 5000 espectadores!) e há cada vez mais alunos de órgão nas nossas escolas. No Conservatório de Lisboa, onde lecciono, surgem cerca de 40 candidatos por ano." Também a nível docente a oferta é maior. "Na minha juventude, o professor Sibertin-Blanc era o único em Lisboa. Hoje existem dois professores no Conservatório, dois no Instituto Gregoriano e um na Escola de Música de Linda-a-Velha." As dificuldades são muitas. "Há escolas que não têm instrumento, as aulas são dadas em igrejas e o órgão é um instrumento muito caro para ser adquirido pelos alunos. Existe também o problema dos planos de estudo. O piano ou o violino têm um repertório universal. No órgão não é bem assim. A formação de um organista em Lisboa tem que ter em mente os instrumentos em que vai tocar. Não interessa preparar um programa com Liszt se depois não existe o instrumento adequado."Por este motivo, António Duarte considera o órgão "um instrumento nacionalista". Uma tendência que também se reflecte na estrutura do festival. Foram convidados intérpretes de várias nacionalidades que tocam geralmente música do seu país: um holandês (Pieter van Dijk), um dinamarquês (Kristian Olesen), um francês (François Epinasse), dois espanhóis (Jesús Gonzalo Lopéz e José Luis Uriol) e dois austríacos (Martin Haselböck e Reinhard Jaud).

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