"Sou um cineasta documental"

João Mário Grilo é o cineasta português este ano homenageado no Festival de Cinema da Figueira da Foz. No domingo, o realizador figueirense teve ao seu lado o seu "mestre" Manoel de Oliveira, que considerou "um dos dois maiores cineastas do mundo". Este agradeceu o elogio e destacou a "autenticidade" a obra de Grilo. O realizador de "O Processo do Rei" afirmou-se como um documentarista. E defendeu que a moral do cinema está no "olhar" que ele lança sobre o mundo.

Manoel de Oliveira, que João Mário Grilo considera "um dos dois maiores cineastas do mundo", deslocou-se, no passado domingo, propositadamente do Porto à Figueira da Foz para testemunhar a sua admiração pela obra do autor de "Longe da Vista". Quando decidiu interromper por momentos o seu trabalho de preparação do filme que vai fazer sobre a vida do padre António Vieira, Oliveira não adivinhava que iria ouvir da boca de Grilo tão sonoro elogio. Mas sabia que viajava de encontro a um jovem realizador que por várias vezes invocou o seu exemplo e a sua obra como uma das razões que o levaram a escolher trilhar os caminhos da expressão cinematográfica."Aprendi com Oliveira o que significa ser um cineasta: não é só fazer bons filmes; é olhar para as pessoas de uma certa maneira. E há muito poucos realizadores que tenham mantido essa coerência do olhar", disse João Mário Grilo, na abertura da sessão pública de homenagem que lhe foi dedicada pelo 28º Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz (FICFF). Acrescente-se que o outro cineasta de eleição de Grilo é Jean-Luc Godard: "Alguém que me olhou sempre do mesmo sítio", explicou o autor português, e cuja obra, como a de Oliveira, "é uma lição de vida, de coerência e de cinema".O olhar é, já se vê, a questão - a moral - primordial do cinema para João Mário Grilo. Uma posição secundada por Manoel de Oliveira, que lhe acrescentou "a autenticidade", considerando ser ela uma das principais virtudes da obra do autor de "O Processo do Rei" e também da generalidade do cinema português, lembrando que é por essa razão que a nossa cinematografia é reconhecida internacionalmente.O director do FICFF, José Vieira Marques, justificou a homenagem a Grilo elogiando igualmente a coerência da sua obra e evocando a ligação do festival ao início da carreira cinematográfica do realizador. Foi, de facto, a Vieira Marques e ao certame da cidade de onde é natural que Grilo deveu o lançamento da sua vida de cineasta quando, em 1979, aí viu ser estreado o seu primeiro filme, "Maria", um trabalho documental realizado em Super 8. Depois de falar das peripécias da aposta na exibição de um filme naquele suporte - o que ia mesmo contra as próprias regras dos festivais -, o director do FICFF lembrou ter então proferido uma afirmação premonitória: "Este rapaz vai dar que falar!"... E deu."A Estrangeira" (1982), "O Processo do Rei" (1989), "O Fim do Mundo" (1993), "Os Olhos da Ásia" (1996) e "Longe da Vista" (1998) são os capítulos seguintes e conhecidos desse caminho que confirmou o nome de João Mário Grilo na cinematografia portuguesa. Uma obra atravessada pelo tom documental - "Eu sou um cineasta documental; tenho dificuldade em fazer ficções puras", diz de si próprio João Mário Grilo, lembrando que o seu primeiro trabalho fazia a montagem de diferentes documentos da sua história familiar. "O cinema apareceu-me como uma espécie de segunda natureza", para ligar objectos diferenciados, explicou.Em todos os seus filmes, Grilo privilegia, de facto, o tom documental, seja na abordagem de temas e episódios históricos (como em "O Processo do Rei" ou "Os Olhos da Ásia"), seja na de pequenos "fait divers" do quotidiano (como em "O Fim do Mundo" ou "Longe da Vista"). "Cada filme meu é um miradoiro sobre o mundo", diz o realizador, acrescentando a sua preocupação em colocar declaradamente o espectador numa espécie de "promontório" a partir do qual vê esse mundo.João Mário Grilo falou também da importância do cinema e do seu lugar de arte acossada, nos tempos que correm, pela emergência da tecnologia digital. "Nada tenho contra o digital, mas contra a sua falta de memória e contra a falta de uma cultura cinematográfica", disse o cineasta em resposta a uma questão levantada da plateia. E acrescentou que o cinema devia ser estudado nas escolas, como acontece com a literatura. Deu, a propósito, o exemplo de Camilo e referiu a importância que teria facultar aos alunos das escolas que são obrigados a ler e estudar o "Amor de Perdição" o contacto com as leituras cinematográficas que Manoel de Oliveira e outros realizadores fizeram da obra do romancista. "É preciso ver os filmes como se lêem os livros", rematou. Apesar de tudo, Grilo diz que o cinema não está em crise. O que é preciso é ir além do sistema americano, que vê o espectador apenas como "aquele que paga o bilhete" e a cada ano que passa faz esquecer o filme do ano anterior. Contra este analfabetismo cinematográfico, o realizador terminou afirmando a necessidade de preservar a memória das pessoas. Para preservar essa memória, Grilo evocou a importância dos actores com quem tem trabalhado. Entre eles contam-se José Viana (também reconhecido como pintor e de quem o Festival da Figueira está a apresentar uma exposição com meia centena de obras suas) e Canto e Castro, cujas presenças estavam anunciadas na sessão de homenagem, mas que por razões de doença ou pessoais não puderam comparecer. Enviaram, no entanto, mensagens de amizade e admiração, o mesmo tendo acontecido com o realizador José Fonseca e Costa - que, com Manoel de Oliveira, respectivamente com os filmes "O Recado" e "O Acto da Primavera", constitui um dos autores que marcaram a formação cinematográfica de João Mário Grilo.Estes dois filmes e a obra (quase) completa do realizador figueirense - faltou "Maria", devido à inexistência de uma cópia em condições - foram exibidos no fim-de-semana no 28º FICFF, que prossegue até ao próximo domingo com um programa que está a dar especial destaque ao cinema canadiano.

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