O outro Van Gogh

A reabertura do museu Van Gogh, em Amsterdão, ficou marcada pela exposição dedicada ao "outro" Van Gogh. Mais do que justificada: afinal, Theo, irmão do pintor, está na origem da própria existência do museu.

Perto do centro de Amesterdão, no chamado Bairro dos Museus, ficam três destas instituições: o Rijksmuseum, dedicado à arte antiga, o Stedelijk, para a arte contemporânea e o museu Van Gogh, um edifício funcionalista dos anos 70, desenhado por Gerry Rietveld, que reabriu no final de Junho, depois de um ano de encerramento.A fama de Van Gogh, o mais famoso pintor holandês do século XIX (e, para muitos, de todos os outros séculos...) é suficiente para justificar as filas intermináveis de visitantes que durante este Verão se estenderam pela rua. Ou a multidão que se acotovelava frente a cada tela, nos três andares do edifício de Rietveld onde se expõe o espólio do museu. Mas a reabertura do museu Van Gogh teve outros atractivos que se somam à apreciação dos mais famosos quadros do pintor. Uma nova ala foi entretanto construída, para poder acolher exposições temporárias que, anteriormente, dificilmente poderiam coexistir com a apresentação do acervo permanente. Para a inaugurar, duas exposições: uma sobre a obra do arquitecto responsável por este projecto, o japonês Kisho Kurokawa (n.1934), que já assinara diversos projectos de instituições do mesmo tipo; outra sobre a personalidade e a vida de Theo Van Gogh, cujo nome, por circunstâncias várias, acabou por ficar indissociavelmente ligado ao do irmão.A nova ala, à qual se acede pelo subsolo do edifício Rietveld, inspira-se na forma do semicilindro para se contrapor ao cubo de Rietveld. A obra de Kurokawa, embora seja conhecida por estabelecer um contraponto à rigidez formal que caracterizou os anos 70, por exemplo, mantém a escala que também caraterizou o edifício de Rietveld: uma escala modesta, sobretudo se comparada à dos vizinhos Stedelijk e Rijksmuseum, apropriada às dimensões das pinturas de Van Gogh. É neste edifício, passado o rés-do-chão, que se apresentam os testemunhos da vida, dos gostos e da carreira de Theo Van Gogh: ligados, sem separação possível, aos do irmão, no espaço e na história.De Theo Van Gogh, o público talvez já tenha ouvido falar na correspondência que manteve com o irmão - as cartas estão há muito publicadas, e são amplamente referidas de cada vez que se fala no pensamento estético de Vincent. Ou, talvez, saiba que manteve financeiramente o irmão nos últimos anos de vida deste, com quem se comprometeu a tentar vender a obra, sem contudo o conseguir. Seria a viúva de Theo, já depois da morte deste, a grande divulgadora da obra do pintor. Contudo, Theo foi um dos melhores galeristas do seu tempo. Beneficiou da emergência de um mercado da arte em França, e foi ele próprio coleccionador. É desta tripla faceta da sua personalidade - o homem, o galerista, o coleccionador - que a exposição dá conta.Theo e Vincent foram os dois filhos mais velhos do casal Theodorus e Anna Cornelia. Ele foi pastor em Zundert durante vinte e dois anos, e nunca haveria de subir na hierarquia protestante, ao que parece devido aos fracos dotes de retórica que possuía. Mas o casal Van Gogh, se nunca ususfruiu de uma posição social privilegiada, investiu sempre na sua relação, ao ponto de se tornar uma referência idealizada para todos os seis filhos que chegaram à idade adulta. A exigência que mantinham em relação aos padrões morais de todos, mesmo depois de casados, dificultou sempre a vida de Theo, que nunca se conseguiu desligar por completo de obrigações financeiras em relação a irmãos e irmãs.Embora Vincent fosse mais velho, a relação entre ambos acabou por se inverter, sobretudo a partir de 1875, e Theo rapidamente assumiu o papel de protector do irmão. A sua carreira como "marchand" de arte iniciou-se em Janeiro de 1873, em Bruxelas, quando ingressou na galeria dos tios, Goupil & Cia, onde Vincent aliás trabalhava. Theo tinha na altura 16 anos, e uma das pessoas que mais entusiasmo demonstrou com o emprego do irmão foi Vincent, que não se cansou de o encorajar a exprimir o que pensava das pinturas que via e, mesmo, a começar uma colecção de gravuras, o que Theo rapidamente fez assim que as suas posses o permitiram.Theo não foi aprendiz de galerista durante muito tempo. Em Dezembro do mesmo ano, era transferido para The Hague, onde ficava uma das filiais mais prestigiadas da galeria. Nesta época, a cidade era o centro cultural e artístico da Holanda, e foi decerto aqui que Theo se actualizou em relação tanto à arte do seu tempo como à arte mais prestigiada da Holanda, a do século XVII. Durante os dezoito meses que viveu em The Hague, a correspondência entre os dois irmãos aumentou, e dela se depreende que Vincent tinha tomado a seu cargo a educação do gosto artístico do irmão. Contudo, esta foi uma época difícil para Theo.Em Outubro de 1874, os pais escreviam-lhe dizendo que não tinham notícias de Vincent, que entretanto se tinha mudado para Paris, havia semanas, e pediam-lhe que não perdesse o contacto com o irmão. Theo assim fez, mas quando se tornou claro que Vincent acabaria por perder o lugar na firma Goupil, teve que aguentar o desapontamento dos pais: " Agora, que o nosso filho mais velho saltou do barco, depositamos ainda mais esperanças no segundo, de modo a que o conduza a bom porto". Este era o teor das cartas que recebia de casa, e que o colocavam frente ao dilema entre apoiar a decisão do irmão, que queria pintar, e não decepcionar os pais. Tentou, em vão, defender a causa de Vincent - que, aliás, manipulava habilmente os seus sentimentos. Mas em vão. Para os pais, Vincent tinha vergonhosamente escolhido renegar a sociedade. O irmão devia compensá-los dessa perda.Em Março de 1878, os patrões ofereciam a Theo um lugar na filial de Paris. Era a grande oportunidade para o jovem "marchand" de se medir com as maiores galerias do seu tempo, a Durand-Ruel e a Georges Petit, esta última uma galeria de luxo. Era também a imersão total no lugar onde se faziam e desfaziam tendências, escolas e carreiras artísticas. Também em Paris, os papéis entre os dois irmãos inverteram-se: em 1882, Vincent já dependia inteiramente da mesada do irmão para viver, e foi aliás o pintor que, em troca, sugeriu a Theo que ficasse com a sua produção artística e tentasse vendê-la.Nos começos de 1885, Theo já era gerente na Goupil e gozava de uma posição confortável e prestigiada no meio. Foi por esta altura que conheceu Andreas Bonger, com cuja irmã, Jo, haveria de casar em 1889. Entretanto, Vincent mudou-se para casa do irmão em 1886, onde ficou até Fevereiro de 1888, quando se instalou definitivamente no sul de França. A vida em comum dos dois irmãos não deve ter sido fácil. Vincent, cuja saúde mental se deteriorava, acusava-o de toda a espécie de imaginárias traições, e Theo começava também a sofrer de diversos males - tinha sífilis, doença que aliás haveria de o matar em Janeiro de 1891.Contudo, durante esta época, os negócios como "marchand" não pararam de prosperar. Theo comprava e vendia pintura da escola de Barbizon, dos pintores que expunham nos Salões e recolhiam o gosto da maioria do público, e de pintores mais modernos, como os impressionistas ou, até, Gauguin, que era considerado muito difícil de vender. Não ousava muito: era um negociante, e as pinturas que expunha tinham que se vender. Mesmo as impressionistas que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, tinham já o seu público bem definido. Por exemplo: sabe-se que, em 1887, comprou 14 pinturas a Monet, que lhe custaram 19.300 francos. Onze destas pinturas venderam-se no espaço de um ano, por 21.700 francos. Nem Theo nem os seus patrões podem ter ficado descontentes com o investimento.A exposição apresenta, o mais completamente possível, as obras que foram vendidas por Theo Van Gogh. Além de Monet, há também Degas, Pissarro, Manet, Courbet ou Corot. E outros, cujos nomes a História não reteve com a mesma força daqueles. Contudo, foi nas obras sobre papel e noutros suportes menos "nobres" que se nota a tentativa de Theo de criar um mercado orientado para as tendências mais recentes do seu tempo. Gauguin, como já foi mencionado, fazia parte dele, como o próprio Vincent, Sisley e Toulouse-Lautrec.E quais eram os gostos pessoais do "marchand"? Depois das primeiras compras realizadas por instigação do irmão, Theo procurou sempre enriquecer a sua colecção. Nas obras presentes na exposição, predominam os trabalhos sobre papel, sempre de preço mais acessível. Mas há também pintura, se bem que a selecção dê provas de um eclectismo evidente. No conjunto, além dos trabalhos do irmão, destacam-se obras de Gauguin, de quem aquele foi amigo até ao episódio de 1898, de Emile Bernard, Toulouse Lautrec, Seurat, Pissarro, Daubigny, Manet...Em 23 de Dezembro de 1888, em Arles, Vincent, depois de uma violenta discussão com Gauguin, ameaça-o com uma faca e acaba por cortar um pedaço da sua orelha esquerda. Este foi apenas um dos aspectos da deterioração da saúde mental de Vincent, que culminaria no seu suicídio, em 1890. Contudo, foi durante este período que o pintor produziu algumas das suas obras mais famosas: retratos, paisagens, e uma multiplicidade de obras que parecem pintadas a um ritmo vertiginoso. Quando nasceu o filho de Theo e Jo, em 1890, Vincent ofereceu ao irmão um quadro de que este nunca se quis separar: "Ramos de amendoeira em flor". A relação entre os dois irmãos, apesar de tudo, parecia indestrutível.A morte de Vincent, em Julho desse ano, antecipou por poucos meses a do irmão. A 4 de Outubro teve um colapso, e foi internado num hospital em Paris. Morreu em Janeiro de 1991. Estão enterrados lado a lado, em campas idênticas, no cemitério de Auvers-sur-Oise, no sul de França.

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