Divertimento maior

Woody Allen continua a acertar no alvo. "Sweet and Lowdown", é um filme belíssimo, com Sean Penn na pele de um músico de jazz meio chulo meio génio, Samantha Morton a encarnar uma jovem lavadeira muda e, glamorosa e fugaz, Uma Thurman representando uma escritora falhada.

Para não quebrar a tradição, Woody Allen estreou o seu filme anual em Veneza, perante a habitual curiosidade de todos, mesmo porque a monotonia da competição, até agora, precisa de compensação. Para variar, Allen continua a acertar no alvo. "Sweet and Lowdown", embora se assuma como um divertimento, um daqueles filmes intervalares entre obras-primas, que o cineasta constrói melhor que ninguém, funciona também enquanto síntese de alguns dos aspectos fulcrais da sua obra.A história resume-se em poucas palavras: um guitarrista de "jazz", Emmet Ray, meio chulo, meio génio, percorre o período da Depressão, tocando em night-clubs ou em "short features" hollywoodianos, integrado numa orquestra, conhece uma jovem lavadeira muda (notável e rigorosa Samantha Morton), que se apaixona por ele, deixa-a, casa com Blanche (bastante breve e glamorosa participação de Uma Thurman) e desaparece no quase anonimato, depois de gravar algumas faixas clássicas.Como sempre, em Allen, as grandes linhas do argumento, não passam apenas pela sinopse, mas decorrem de pequenas "trouvailles" de encenação. O músico é definido, de forma magistral, pelas suas taras: gosta de matar ratazanas com o revólver, de que nunca se separa; rouba, por compulsão cleptomaníaca, todo o tipo de objectos; adora ir ver passar combóios, só ou com as namoradas de ocasião. A estrutura de base da narrativa faz lembrar o seu primeiro filme, "O Inimigo Público", com entrevistas forjadas e depoimentos pretensamente autênticos, alguns deles, como no caso do assalto ao posto de gasolina, sugerindo um duplo ponto de vista. De modo sintomático, o depoente-mor, que inicia e, de certo modo, encerra as hostilidades, é o autor, Woody Allen, máscara e desdobramento de si próprio.Uma outra das autocitações refere-se ao estatuto do protagonista, criação fictícia, num contexto histórico reconstruído com rigor e contendo, inclusive, inúmeras referências e uma breve representação do arquétipo do guitarrista de Jazz, o "cigano" francês, Django Reinhardt, remetendo assim de forma ínvia para "Zelig", o falso documentário ficcional, por excelência.No entanto, nem só de ecos do passado vive este fulgurante retrato de artista em anarquia e liberdade. Tratando a personagem de Sean Penn, um milagre de "casting", como um produto clownesco de um mundo enlouquecido, Allen instala no falso biografismo de tons documentais uma toada burlesca com "gags" discretos, mas eficazes: o episódio da Lua dourada que cai em palco, a aterragem em pleno antro dos falsificadores de dólares, seguida da elipse que coloca Emmet a conduzir o tão cobiçado carro de luxo, ou o desmaio, tantas vezes anunciado nos comentários corais à acção, quando avista Reinhardt, depois do choque com o carro cheio de músicos de Jazz, na segunda versão do assalto à estação de serviço.Paredes meias com a comédia mais descabelada, nunca forçando a nota, antes privilegiando as sugestões e os sub-tons, persiste uma subterrânea atmosfera trágica, com a figura da muda, a única que entende e aceita os pequenos prazeres de Emmet, a inserir uma doce resignação no tecido narrativo, instrumento do destino e "vítima" de uma situação que aceita em inelutável silêncio. Porventura o momento mais comovente deste filme belíssimo centra-se na inexistência de contracampo do rosto de Samantha Morton, aliado à impossibilidade de contracampo sonoro, no momento em que Sean Penn indaga da possibilidade de reatar a relação entre ambos: é na desolada expressão de Penn e nas suas sucessivas e curtas perguntas ("Feliz?", "Filhos?", Menino?", "Menina?") que reconstituímos o desenlace de uma tocante história de amor impossível.Inscrevendo-se num mundo de largas tradições cinematográficas (a referência a Cagney pelo guarda-costas, amante de Uma Thurman funciona menos como citação do que como paródia), "Sweet and Lowdown" analisa a ascensão e queda de um artista que nunca chega a atingir a notoriedade senão no seu próprio discurso: "melhor do que eu só o 'cigano', Django Reinhardt".Em brilhante "trompe l'oeil", Woody Allen prossegue, portanto, a sua questionação sobre os lugares da criação artística, sobre os imponderáveis da genialidade, sobre a possibilidade de inserir a dimensão cómica nos interstícios do melodramático (sempre mais próximo de Keaton do que de Chaplin), reformulado para tocar o sentimento, fazendo rir ou só sorrir. Por isso, a personagem de Sean Penn evolui como um palhaço triste, "alter-ego" de Woody Allen, também ele músico de Jazz, émulo dos grandes trompetistas (que gostaria de encarnar), como o Emmet inventado o é de Reinhardt. Na escritora falhada de Uma Thurman desdobra-se, parcialmente, o argumentista, obcecado pela arte como sublimação dos impulsos inconscientes.Filme pessoalíssimo, em tom menor e, por vezes, plangente, "Sweet and Lowdown" inscreve-se, pois, no grosso da obra "alleniana" com uma urgência mesclada com uma madura serenidade. Se Woody Allen, faz sempre, de certo modo, o mesmo filme, com mais ou menos estrépito, sentimos que amiúde consegue na surdina de pequenos exercícios de estilo a amplitude dos grandes solos cinematográficos. Isolado como artista, excêntrico como homem, errático como amante, o fictício Emmet Ray toca a verdade e a essência da arte das imagens e dos sons, "Allen style".

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