A morte de Nicandro Barreto e o Estado de direito na Guiné-Bissau

1 - Nicandro Barreto foi assassinado.No dia 16 de Agosto, véspera do meu regresso a Lisboa, jantei com ele e a filha na sua casa de Bissau, no exacto local onde os seus algozes o liquidaram. Foi um jantar longo, calmo e afectuoso, daqueles que em África têm um sabor inesquecível.Comemos umas magníficas bicas, que a Milena, a filha, tinha requintadamente grelhado. Seguiu-se uma galinha, daquelas que sabem a galinha, saborosa e temperada como só em Bissau. Bebemos vinhos portugueses. Branco, para as bicas. Tinto, para a galinha. No fim, o Nicandro fez questão de desencantar uma última surpresa. Apesar da minha resistência, ele insistiu e lá fomos saboreando, noite fora, um uísque de 40 anos que ele guardara para uma ocasião especial.E conversámos, conversámos sem fim. Sobre a Guiné, Portugal, o PAIGC, a Junta Militar, a crise política guineense, a Faculdade de Direito de Bissau, os amigos comuns. Concordando aqui, discordando ali ou discorrendo simplesmente sobre o que nos vinha à cabeça, como só a amizade permite.2 - Conheci o Nicandro Barreto em 1990, quando, com o Jorge Quintas e o Frederico da Costa Pinto, desembarquei na Guiné, em representação da Faculdade de Direito de Lisboa, para coordenar a equipa que levou à fundação da Faculdade de Direito de Bissau. Na bagagem levava saudades dos amigos comuns: o Francisco Teixeira da Mota, o António Duarte Silva e o José Lamego.Do lado português, o empreendimento, nessa fase inicial, teve a direcção académica de Oliveira Ascensão e Sérvulo Correia. Do lado guineense, Nicandro Barreto - a quem sucedeu Mário Cabral - foi o principal responsável político pela iniciativa. Uma coisa é indiscutível: só a visão de Nicandro Barreto permitiu a criação da faculdade.Esta instituição, que funcionou desde 1990 até 7 de Junho de 1998 e se espera que possa brevemente retomar o seu rumo, constitui certamente um dos mais belos e bem sucedidos projectos da cooperação portuguesa.Francisco Benante, ministro da Defesa e promissor candidato à liderança do PAIGC, Kumba Yalá, líder do PRS e principal adversário de "Nino" Vieira nas últimas presidenciais, Armando Porcel, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Emiliano Nosolini, Emílio Costa e Rui Nené, presidente e juízes-conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, Cipriano Naguelin e Armando N'Tchoba, procuradores da República, Pedro Infandá, director da Polícia Judiciária, Anildo Cruz e Silvestre Alves, da Ordem dos Advogados, Adelino Sanca, da Alta Autoridade contra a Corrupção, e ainda Sandji Fati, actualmente detido, último chefe do Estado-Maior do Exército de "Nino" Vieira, foram todos docentes e/ou alunos da Faculdade de Direito de Bissau. Neles se joga, numa parcela importante, o futuro da Guiné-Bissau.3 - Nicandro Barreto era um velho e respeitado militante do PAIGC e fez parte do último Governo de "Nino" Vieira. Foi-lhe fiel até ao fim, mas participou em todas as tentativas que visaram uma solução pacífica para a ruptura constitucional.Encontrei-o desiludido com o papel do Governo português durante a crise, mas reafirmou-me que a História da Guiné-Bissau, ontem como amanhã, é indissociável de Portugal e dos Portugueses. Vi-o entristecido com aquilo que considerava as intromissões abusivas do poder militar na vida interna do PAIGC, mas, sobretudo nesse derradeiro jantar, observei-o disposto a trabalhar numa alternativa consensual que permitisse a melhor liderança para o seu partido, que ele considerava um elemento aglutinador da sociedade guineense. Achei-o politicamente derrotado, mas continuo a ver, no brilho do seu olhar, a fibra do lutador corajoso que foi até morrer.4 - Nicandro Barreto foi certamente vítima de um ajuste de contas de motivação concreta ainda não esclarecida.Que a maturidade do povo guineense e o sentido de responsabilidade do actual poder - e eu quero acreditar numa e noutro - não permitam que tal facto abra caminho a uma escalada de intimidação e eliminação física de vozes incómodas e de adversários políticos.Que a justiça seja feita com rapidez e dignidade, mas que as autoridades não se deixem orientar por preconceitos, boatos ou desígnios políticos.

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