O Bloco de Esquerda e a esperança

Há na configuração política própria da civilização europeia uma componente que julgo ter sido raramente referida: o princípio - ou melhor, o postulado - de que todo o poder comete erros e excessos e que estes têm de ser denunciados. O princípio foi herdado do judaísmo e teve nele uma expressão não só activa e persistente, mas até sagrada. É um dos aspectos essenciais do profetismo enquanto ele denunciou as várias formas de abusos cometidos pela realeza e pelo poder económico. As suas veementes expressões foram guardadas na Bíblia, como inspiradas por Deus, a par da lei e dos relatos sobre a história do povo judaico. Jesus Cristo insere-se também nessa tradição. Foi em seu nome que os cristãos combateram muitas das perversidades do Estado romano. Depois da conversão do império, apesar de todas as conivências com o poder político aceites pela Igreja constantiniana, nunca deixou de haver denúncias contra abusos da força bruta dos reis bárbaros e cristãos, dos senhores feudais, dos soberanos da época moderna, a par, é evidente, de numerosos, ou mesmo maioritários, compromissos com o poder estabelecido e com as suas perversões. Em todas as épocas se encontram protestos contra a opressão dos fracos, em nome da própria concepção da origem divina do poder: Deus, protector dos pobres e dos sem defesa não podia nunca abençoar a opressão e a violência desnecessária. Praticá-las em seu nome constituía uma verdadeira blasfémia.Creio não existir uma tradição semelhante nas civilização europeias, mesmo quando valorizam a compaixão e condenam a violência. Em termos gerais consideram os desvios do poder como uma fatalidade inerente ao mundo inferior em que o homem vive. Julgo não fazer parte das concepções políticas orientais a ideia do valor fundamental da contestação política, quando os reis, imperadores e caudilhos se transformam em tiranos. É verdade que, no Ocidente, a Igreja Católica foi progressivamente esquecendo a tradição política judeo-cristã à medida que colaborou na construção do Estado moderno e fez depender a sua organização do apoio que ele lhe trazia. Não admira, portanto, que a velha tradição tornada parte integrante das concepções ocidentais tenha sido herdada pelas correntes de esquerda que puseram em causa as monarquias absolutas, não já em nome da própria origem divina do poder, mas em nome dos direitos humanos. Tornou-se assim uma das componentes essenciais da tradição europeia.Todavia, com a Revolução Francesa, e sobretudo com a criação dos partidos socialistas de diversas tendências, as esquerdas deixaram de praticar a denúncia do poder em nome de um princípio sagrado, para o fazerem também em nome de uma certa forma prática de organizar a sociedade, ou seja, de exercer o poder. Passaram a reivindicar para si próprias aquele mesmo poder que os iluministas atribuíam ao despotismo esclarecido: a legitimidade vir-lhe-ia de o exercerem em benefício dos súbditos. Mas, ao conquistarem-no, pela força revolucionária ou pelo sufrágio eleitoral, caíram inevitavelmente naquelas situações de compromisso, muitas vezes de abuso, que, como esquerda, deviam acusar. A sua força contestatária transformou-se frequentemente em retórica legitimadora de concessões ditas inevitáveis ou em estratégia para ocultar o que devia ser denunciado. Continuando a reclamar o estatuto de esquerda, perderam a base da sua força persuasora.Os actuais equívocos acerca do conceito de esquerda parecem-me vir, em grande parte, daqui. A verdadeira esquerda, aquela que se insere nos arquétipos das concepções políticas europeias, é aquela que contesta o poder não como forma de o conquistar, mas porque toda a injustiça tem de ser denunciada. Tal como a própria Igreja Católica que, ao aceitar o poder que lhe foi entregue por Constantino, perdeu, como instituição, a sua força profética, também o socialismo, e o comunismo, enquanto partidos políticos ou enquanto governo, perderam a eficácia da contestação. Mesmo quando são partidos minoritários não deixam de se inserir no jogo legitimador do sistema que julga não ter de se ocupar com os excluídos só porque a lógica do desenvolvimento global e da rentabilidade política assim o exige.Neste fim de milénio, o colapso das utopias e a descrença no progresso social em face da falência das grandes promessas políticas e económicas acerca de um hipotético bem-estar universal trouxeram consigo a ideia de que a política não consiste em melhorar as estruturas sociais, mas em gerir as contradições do dia-a-dia. Talvez o realismo que está por detrás deste desencantamento não seja pior do que o culto colectivo de esperanças ilusórias. Mas daí à resignação trazida pelo medo de que amanhã seja pior ainda vai apenas um passo. Por isso, a esquerda continua a ser não só necessária, mas também vital para a busca de soluções que não sejam apenas para a maioria mas para todos. A sua missão não será tanto a de apontar os abusos do poder - que existem sempre e que, portanto, terão sempre de ser apontados -, mas de denunciar a política resignada de quem se contenta com o mal menor. A política nunca resolverá todos as necessidades humanas, mas será preciso sempre confrontá-la com os ideais que ela própria diz querer alcançar. A política exige o inconformismo e a busca constante de alternativas. Só pode ser alguma coisa enquanto for tão inventiva e criadora como a própria vida.Tudo isto vem a propósito do Bloco de Esquerda, a que aderi publicamente. As minhas razões fundamentais são as que tentei expor aqui. A posição que o Bloco tomou até agora e que parece estar-lhe reservada pelo próprio facto de ter de excluir dos seus projectos a conquista do poder político, mas de, ao mesmo tempo, se constituir como força política e não apenas como fórum de discussão intelectual, instaura uma situação propícia ao seu desempenho eficaz como voz contestatária do poder e das suas perversões. Dá-lhe o direito e confere-lhe o dever de denunciar não só abusos, mas também incompetências, mentiras, mediocridade, passividade, ineficácia. Libertado da lógica do sucesso eleitoral, pode cultivar a inovação e soltar a imaginação. Pode ensaiar com os seus adeptos formas novas de solidariedade e de luta pelo bem comum. Inscreve-se, assim, nos arquétipos da mais longínqua tradição política da civilização europeia. Colabora a seu modo na construção da Europa. Esperemos que o faça com tanto vigor e com tanta autoridade como a das vozes que estão nas suas origens. É uma esperança para os próximos tempos.

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