A "Guerra das Estrelas" em versão negra

Chamam-lhe "gueto fabuloso". É a transformação dos vulgares cantores rap em mutantes, insectóides e super-heróis do hiperespaço. Uma história de telediscos em que as estrelas principais são Busta Rhymes e Missy Elliot, sempre com Hype Williams na realização.

Em tempos, denunciou-se o alegado boicote da MTV aos artistas negros. Agora muitos europeus que têm televisão por cabo não apreciam os canais de música pela "overdose" de música negra. Acham que essa música - sobretudo rap e r&b - tem pouco a ver com os hábitos de consumo europeus, o que até está certo. Mas também e sobretudo porque são da opinião que esses clips são todos iguais: cantores de óculos escuros, correntes ao peito, fatos de treino de tamanho XXXL e ténis, a passearem-se em automóveis topo de gama e a dançarem em poses machistas no meio de uma legião submissa de "top-models" semidespidas. Este figurino caricatural é que já não é verdadeiro, ou pelo menos tende a ser ultrapassado. Há um novo imaginário negro que privilegiadamente está a ser criado e veiculado através dos telediscos e que, justamente, aposta na subversão daquele estereótipo. A invenção e a fantasia que, na década de 80. se associou aos clips de estrelas como Madonna ou Michael Jackson, são, nos finais dos anos 90, atributos de uma geração de artistas rap onde se destacam Busta Rhymes e Missy Elliot. Com o hino "Whoo Ha! Got you all in check", Busta Rhymes surgiu em 1996 como uma espécie de extraterrestre, no universo de gangsterismo barato que então dominava o rap. Mas foram sobretudo os seus telediscos, de um surrealismo delirante e febril, que contribuíram para sedimentar essa imagem. O clip de "Put your hands where my eyes can see" é paradigmático: Busta veste, sucessivamente, a pele do caçador tribal, do zumbi tresloucado e do feiticeiro demoníaco. Não é a imagem que os negros gostam de ter das suas origens africanas, mas algo de mais próximo dos "clichés" deformadores que os brancos deles impuseram. Só que Busta apropria-se dessa imagem degradante, para dar largas à sua fantasia burlesca e forjar uma caricatura da caricatura, que insufla doses transbordantes de invenção à iconografia rap.Mais conhecido é o teledisco de "Gimme some mo'", passado em alta rotação pela maior parte dos canais de música no Natal passado, altura do lançamento do seu terceiro álbum "Extinction Level Event". É o tal em que Busta surge como miúdo de fraldas, pistoleiro mexicano e polícia hiperartilhado, num cenário de conto de fadas. É a reciclagem dos estereótipos da América branca e da classe média, segundo uma lógica de esquizofrenia destrambelhada, próxima de uma encarnação negra dos desenhos animados de Tex Avery. A extravagância de Busta Rhymes tem uma exacta contrapartida feminina em Missy "Misdemeanor" Elliot. Eleita rainha do rap desde o álbum de 1997 "Suppa Dupa Fly", Elliot está a meio caminho entre a matriz soul de Lauryn Hill e o som futurista de Timbaland, mas com letras de um feminismo heterodoxo, que reivindicam orgulhosamente o insultuoso título de "cabra". Foi também através dos seus invulgares telediscos que Missy primeiro se tornou notada. Em "The rain", a sua estreia na área da música visual, surge no papel de uma encarnação negra e feminina da famosa mascote dos pneus Michelin. Depois, no teledisco de "Sock it 2", aparece com um "M" gigante pintado no peito, enquanto se veste e gesticula como se fosse Nubia, a "supermulher" negra dos livros aos quadradinhos dos anos 60. Em "She's a bitch", o novo teledisco que promove o recém-lançado álbum "Da Real Thing", Missy reemerge como um monolito cibernético das águas de um mar virtual. É como uma ressurreição rap dos industriais Urban Sax, vestida com um fato insuflado, com os lábios e os olhos aumentados até à deformação por efeitos de computador. Misturando filmes de "blaxploitation", banda desenhada de super-heróis e ficção científica, a imagem Missy Elliot é a de guerreira futurista negra para o século XXI. Tão ou mais importantes que os artistas na propagação deste novo imaginário negro são os realizadores dos telediscos. Curiosamente, o primeiro clip concebido segundo o novo visual de extravagância, difundido em alta rotação à escala planetária, foi o do dueto de Michael Jackson com a sua irmã Janet, ou seja, duas estrelas no olimpo audiovisual desde os anos 80. Chamou-se "Scream" e situou-se algures entre em episódio da saga "Alien" e uma banda desenhada Manga. Também o seu realizador, o galardoado Mark Romanek, não é um autor conotado com uma estética particular, embora o seu nome esteja ligado a alguns dos melhores e mais polémicos vídeos desta década, incluindo "Perfect Drug", dos Nine Inch Nails, e "Criminal", de Fiona Apple.Na realidade, se alguém pode reivindicar a patente da estética agora rotulada de "gueto fabuloso" é Hype Williams. Foi ele que realizou todos os telediscos supracitados de Busta Rhymes e Missy Elliot, mas muitos mais na mesma linha, como sejam o dueto de Busta com Janet Jackson, em "What's gonna be", que se aproxima de uma transposição vídeo do "Surfista Prateado", e "No scrubs", onde as TLC reemergem como gueixas do hiperespaço. Hype Williams nasceu em Queens, há 29 anos, frequentou o mesmo liceu que LL Cool J e os Run DMC e estudou cinema na Universidade de Adelphi, antes de ganhar o seu primeiro ordenado como assistente de produção da casa de vídeo Classic Concept Produtions. Seis anos depois de ter começado a realizar telediscos, acaba de estrear a sua primeira longa-metragem, "Belly", que tem por actores principais as vedetas rap DMX e Nas (Hype também assinou "Hate me now" para o segundo, clip muito controverso por representar o rapper numa cruz, como Jesus Cristo). Cruciais para o trabalho de Williams são ainda as colaborações com o desenhador de interiores Reagan Jackson, criador de cenários em forma de caixa, nas quais os cantores parecem explodir, e a estilista June Ambrose, a quem se devem as roupas futuristas de Missy Elliot. Juntos estão a mudar a face dos telediscos, ao mesmo tempo que contribuem para reinventar a música e dar um novo brilho ficcional ao rap.

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