"Tenho mais medo este ano"

Aconteceu o que toda a gente em Barrancos já estava à espera. A Comarca de Lisboa, desta vez através do 14º Juízo Cível, volta a proibir "neste Verão de 1999" a tourada com touros de morte naquela vila raiana. A população está na expectativa de novos desenvolvimentos, mas vai avisando que "o bicho não se come vivo".

A decisão, do 14º Juízo da Comarca de Lisboa, suplanta, pela sua dureza, a que foi expressa no mesmo sentido no ano passado, dessa vez pelo 13º Juízo. Vai ao ponto de impedir "quaisquer actividades de vendas de bilhetes, arranjo de bancadas, contratação de toureiros e aquisição de touros" em Barrancos. Ficam também interditos "pedidos de donativos e contribuições de pessoas singulares ou colectivas" que se destinem à tourada. A determinação vai ao ponto de impedir "as actividades ou as acções preparatórias", que incluem a retirada atempada do "touro ou touros" para as lides ou o transporte dos mesmos antes do próximo dia 29 de Agosto, altura em que começam os festejos da vila alentejana. Conclusão: "A tourada não deve nem pode ter lugar". Mas caso isso venha a acontecer "nunca a morte do touro deve ser permitida ou tolerada", determina o procedimento cautelar emanado da Comarca de Lisboa.A Sociedade Protectora dos Animais (SPA), que requereu a determinação jurídica, justifica a sua atitude contra os touros de morte alegando que os animais são sujeitos "a uma brutalidade extrema, característica de uma sociedade de olvido, recalcada". A comissão de festas em honra de Nossa Senhora da Conceição em Barrancos já o ano passado tinha desmentido categoricamente que os animais fossem sujeitos a quaisquer sevícias, quer antes, quer depois da faena. As movimentações da SPA estão a suscitar os inevitáveis protestos da população da vila alentejana. "Não é nada que não esperássemos", comenta Fernando Silva, agastado com a "perseguição da Liga". Este barranquenho sente-se estupefacto pelo teor da decisão do tribunal que considera "muito violenta" para uma comunidade que sempre teve um comportamento ordeiro e civilizado.Bem cedo, na manhã de ontem, chegou ao conhecimento da população que a sua festa anual estava de novo sujeita a polémica, facto que não lhes agrada nem querem alimentar. A expressão mais ouvida - "deixem-os em paz" - define o estado de espírito da esmagadora maioria dos seus elementos. "Nunca tivemos nada disto até há dois anos atrás", observa Maria Joaquina, recordando que "nem no tempo do Salazar, que nos fez sofrer com uma terrível ditadura", a festa foi proibida "nesta terra que continua longe de Portugal". Sem perceber o porquê de tanta visibilidade a uma realização "que dura há tantos séculos", a barranquenha não vislumbra "nenhuma crise", na tourada tradicional. Embora reconheça que "a lei é lei", faz questão de salientar que os seus conterrâneos "não são nem maus, nem animais", frisa, emocionada pela forma como o seu "povo é tratado por essa gente que não" o conhece. E em jeito de apelo, pede que os deixem em paz, um pedido que prenuncia algo de grave se os impedirem de fazer a festa como sempre a fizeram: "Tenho mais medo da festa deste ano", confessa.O proprietário do Café Central é mais lacónico a expressar o seu desagrado em relação à decisão judicial. Confiante de que tudo vai ser como sempre foi, sustenta que a festa "não foi proibida" na vontade das pessoas. Por outro lado "o bicho, vivo, não o podemos comer". Sem mais comentários, despacha o jornalista, alegando que estava a trabalhar e com a casa cheia de gente.Solidário com Barrancos está também o seu pároco, Agostinho dos Santos, figura tutelar de um povo que conhece há 53 anos, tantos quantos leva de sacerdócio na vila fronteiriça. Acredita que, apesar da decisão do tribunal, tudo acabará bem. Não encontra explicações plausíveis para a atitude da Sociedade Protectora dos Animais, que considera "animada de maldade em relação a um povo que sempre quis viver em paz" e que sempre se manteve mais ligado a Espanha que a Portugal. Dá um exemplo: "Quando aqui cheguei [a Barrancos], havia uma estrada de pó aberta há poucos anos, que ligava o lugar a Moura enquanto que para Espanha, as ligações, mais e melhores, já existiam há muitos mais anos". É esta indiferença em relação ao povo barranquenho que o padre Agostinho realça para justificar o porquê dos costumes e das tradições de uma comunidade que sempre - e ainda hoje - viveu isolada. Basta atentar no estado precário da única estrada que liga Barrancos ao resto do país. "É tão ruim que a Junta Autónoma de Estradas a passou de estrada nacional a caminho principal", costuma dar como exemplo do abandono António Tereno, o presidente deste município que é o mais pobre de Portugal.Mas não é só da população de Barrancos que se ouvem os protestos contra a decisão da Comarca de Lisboa. Um dos mais indefectíveis apoiantes da causa barranquenha é Domingos Xavier, crítico tauromáquico, que define a decisão judicial como um "disparate" que não toma em linha de conta a realidade histórica e social da localidade. Ao mesmo tempo discorda de um Juízo "que toma uma decisão sem ter ligação directa à terra" e critica os políticos que "tiveram o assunto em mãos e o meteram na gaveta". Para Domingos Xavier, o procedimento cautelar é uma atitude gratuita da parte da SPA, "que mais não fez senão brincar com o povo de Barrancos". Acredita que o diferendo, à porta do processo eleitoral, "vai pôr a ridículo as forças da ordem" que, se vierem a actuar, "vão ter de prender uma população inteira". A nível regional, as diferentes forças políticas já tomaram posição. A distrital de Beja do PSD divulgou um comunicado em que o seu presidente, Raúl Santos, manifesta solidariedade ao povo de Barrancos, "que está a ser humilhado" por quem nunca se preocupou com as suas dificuldades. Os deputados socialistas não são poupados, sendo acusados de terem adiado a aprovação do seu próprio projecto que visava pôr fim a uma situação sempre susceptível de conflito.Por seu turno, o presidente da Federação de Beja do PS, Gavino Paixão, argumenta que não faz qualquer sentido a providência cautelar, quando a iniciativa tomada no ano passado no mesmo sentido veio a ser indeferida, não se justificando por isso uma nova determinação judicial.Rodeia Machado, deputado do PCP pelo círculo de Beja, considera "inoportuna" a providência, que lhe parece marcada por fundamentalismos.Igualmente preocupado com as consequências da proibição da corrida está o Governador Civil de Beja, Agostinho Moleiro. Interrogado pela agência Lusa, diz que tenciona solicitar a análise de algumas questões jurídicas, nomeadamente na parte que refere a proibição do arranjo das bancadas e da venda de bilhetes, que lhe suscitam dúvidas.Ciente das dificuldades que possam evidenciar-se na sequência da decisão do 14º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, Moleiro diz esperar orientações da tutela para tomar posição sobre esta matéria. Também o secretário de Estado adjunto do ministro da Administração Interna, Armando Vara, já fez saber que vai "estudar a providência cautelar", mas evitou prestar mais esclarecimentos. No entanto, o Governador Civil de Beja recebeu já um despacho daquele Ministério para que dê conta à autarquia de Barrancos e à comissão de festas do teor da providência cautelar.O padre Agostinho está consciente da gravidade do problema e receoso de que "a coisa não corra bem" se a decisão passar apenas pelo impedimento da tourada. "O povo é muito pacífico, mas quando o provocam, o que vem a seguir é completamente imprevisível", adverte o pároco, conhecedor profundo da personalidade dos barranquenhos.

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