O pesadelo dos Beatles

Manson, Man-Son, homem-filho, filho do homem. Ele diz que é uma projecção. Que o mal está na sua sombra. Que ninguém lhe toca sem se queimar. Que é um mensageiro do fim. Há trinta anos, um grupo de jovens seguidores de Manson - A Família - horrorizaram o mundo com uma série de crimes. Entre as vítimas, estava a actriz Sharon Tate, grávida de oito meses. Como um pesadelo, ao som de "Helter skelter", dos Beatles, a geração de 60 agonizava.

Kathleen Maddox entrou uma tarde num café e sentou-se a uma das mesas com o filho ao colo. A empregada, mais maternal do que a cliente mas estéril, ficou encantada com a criança e não encontrou melhor elogio do que perguntar-lhe, em jeito de piada, quanto é que queria para lhe ficar com o bebé, uma vez que não podia ter filhos. Kathleen, mãe solteira e ainda adolescente, respondeu-lhe: "Paga-me uma imperial e fica com ele". A empregada pôs-lhe a cerveja à frente, Kathleen bebeu pausadamente, depois levantou-se e saiu sem levar o bebé. Dias depois, o tio da criança calcorreou a cidade à procura da empregada e acabou mesmo por encontrá-la mas, como afirmou seis décadas mais tarde aquele que foi vendido pelo preço de uma imperial, "É difícil encontrar o caminho de casa". Charles Milles Manson, nascido em Cincinnati, Ohio, fará no dia 12 de Novembro 65 anos e escolheu o percurso mais difícil, torturado e demencial para regressar a casa, de tal forma que perdeu a direcção da sua rua, da sua cidade, do seu país, do seu planeta, do seu tempo e, pior que tudo, da sua realidade. Como o próprio afirmou, na mais recente entrevista que deu: "Andei perdido a flutuar no espaço durante 700 anos". Se a mente de Charles Manson ficou dispersa em outras dimensões, só ele o pode dizer, mas o seu corpo teve um efeito bem concreto neste mundo, deixando um rasto de horror que fez dele uma das mais temidas e assustadoras personagens do século. O facto, embora aterrador, não deixa de ser espantoso. Charles Manson conseguiu arrastar os seus seguidores para o opróbio e os seus inimigos mais felizes tiveram de receber pelo menos tratamento psiquiátrico, no entanto, o "feiticeiro" não chegou a viver mais do que 15 anos em liberdade, se forem contabilizados todos os intervalos entre prisões e reformatórios que frequentou. Que dimensão oculta é então habitada por este génio do mal, que chegou a ser tomado como uma reencarnação de Cristo e temido - até por ele mesmo - como um emissário do Apocalipse? Usemos as suas palavras: "Eu vivo no meu mundo, sou o rei de mim mesmo no meu próprio reino, mesmo que seja uma lixeira ou um deserto. Podem aprisionar o meu corpo e arrancar-me as entranhas, façam o que quiserem, mas eu continuo a ser eu e isso vocês não me podem tirar". Renegado pelos vivos, Charles Manson decidiu habitar o reino das trevas, mas o cenário que montou nada tinha de fantasista: "Comi os restos dos vossos caixotes do lixo para me manter fora da cadeia. Usei as roupas que vocês deitaram fora. Fiz o melhor que pude para me adaptar ao vosso mundo e agora querem-me matar. Olho para vocês, vejo como são incompetentes e digo para mim próprio: Querem matar-me, mas eu já estou morto, toda a minha vida tenho estado morto, a viver nos túmulos que vocês construíram", afirmou durante o processo dos crimes na casa de Sharon Tate e do casal LaBianca, em que foi condenado à morte (e depois à prisão perpétua quando a Califórnia aboliu a pena de morte).Foi durante o processo Tate/LaBianca que foram exumados os restos da geração de 60, substituindo uma época de ideais optimistas pela desolação dos seus resultados fatídicos. A 9 de Agosto de 1969 um grupo de jovens seguidores de Manson, baptizado de "A Família", deu a definitiva machadada nessa década "florida". Charles Manson não quis responder pelo crime, mas justificou-se com um enigma: "Eu sou apenas aquilo que vive dentro de cada um de vós". Logo, via em si a projecção daqueles que o rodeavam: "Eu sou aquilo que vocês fizerem de mim, mas o que vocês querem é um pervertido; vocês querem um sádico pervertido porque é o que vocês são". Manson procurou jogar com o sentimento de culpa daqueles que se horrorizavam com os seus actos: "Vocês dão uma grande importância às vossas vidas. Muito bem, a minha vida nunca foi importante para ninguém, nem mesmo na forma de vocês entenderem aquilo que temem e aquilo que fazem". Esta transviada consciência, por muito trapalhona que seja a forma de se expressar, guardava apesar de tudo uma intenção: "Podem enfiar-me na prisão, isso nada significa porque me expulsaram da última vez em que lá estive. Eu não pedi para ser libertado. Eu gostava de estar lá porque gosto de mim". Após uma série de delitos que o fizeram passear de reformatório em reformatório desde os nove anos até à idade adulta - tinha quase 18 anos quando aprendeu a ler e a fazer contas, na instituição prisional de Chillicothe, Ohio - Charles Manson foi condenado a dez anos de cadeia por ter extorquido 700 dólares à namorada, que engravidou, e por ter violado a sua companheira de quarto. Depois de ser mudado do Texas para a ilha McNeil, no Estado de Washington, estudou budismo e cientologia (igreja criada por Ron Hubbard) e aprendeu a tocar guitarra com Alvin Karpis (único sobrevivente de um dos mais perigosos e temidos gangs da época, os Ma Barker) e começou a escutar obsessivamente a música dos Beatles.Foi libertado em 67 contra a sua vontade: "Sabia que não podia adaptar-me ao mundo lá fora, depois de estar em cadeias a vida inteira, que era onde me sentia livre. Agradava-me a ideia de ficar na penitenciária, dar os meus passeios pelo pátio, ao sol, e tocar guitarra".Chegado a São Francisco, instala-se em Haight Ashbury, junto da cena hippie. Toma contacto com as drogas psicadélicas e atrai um grupo de jovens, na sua maioria raparigas fugidas da casa dos pais. São atraentes mas pouco espertas e muito narcotizadas. Inicia-as em orgias colectivas - que estabelece num ritual muito coreografado e cheio de cauções purificadoras e unificadoras do grupo - e nas suas teorias escatológicas, que vai beber ao Apocalipse de João e à música dos Beatles. Em 1968, quando sai o "álbum branco" dos Beatles, Manson interpreta-o como um conjunto de mensagens espalhadas pelas canções. É chegada a hora de actuar. "Blackbird" é considerado um sinal da revolta dos negros e "Helter Skelter" o início dos tumultos. Mas em vez de esperar, decide dar-lhes início. "Revolution 9" é o seu repto e Charles Manson, que aos 9 anos tinha posto fogo à escola para onde o mandaram, escolhe o dia 9 de Agosto para o primeiro ataque. Só para reforçar esta obsessão numérica, acrescente-se que foi do capítulo nono do Apocalipse (em inglês "Revelation") que fez as suas interpretações: "E deram-lhes ordem para não fazerem mal à erva, nem aos arbustos, nem às árvores, mas às pessoas que não foram marcadas na fronte com o selo de Deus". Desde então Manson passou a usar uma suástica gravada na testa. As suas intenções, ou as interpretações que se fizeram das suas intenções, são várias. Manson achava que a civilização estava em decadência e a forma de purificá-la era iniciar uma série de crimes hediondos e forjar provas de que os negros eram os culpados. Iniciada uma guerra interracial, os negros venciam e os brancos seriam eliminados, menos a "família" de Manson, escondida numa mina do deserto, onde se reproduziria, preparando-se para o regresso, quando os negros já tinham confirmado perante eles próprios não terem condições para governarem o mundo.Esta tese, a defendida por Vincent Bugliosi - o advogado que o incriminou - é tão chanfrada que nem mesmo as "trips" de ácido são suficientes para lhe dar alguma credibilidade, mas a verdade é que a "família" de Manson só foi conotada com os crimes depois da polícia ter visto a inscrição "helter scelter" (sic) na porta do rancho de George Spahn, onde na altura estavam a viver. A segunda é um pouco mais coerente. Um dos primeiros anfitriões da "família" de Manson foi o professor de música Gary Hinman, assassinado no dia 6 de Agosto por um dos membros da "família", depois de se ter recusado a dar-lhe o dinheiro que tinha recebido de uma herança. Bobby Beausoleil (tinha representado a personagem do diabo em "Lucifer Rising", do realizador "underground" Kenneth Anger) foi acusado do crime e na parede da sala estava escrito "political piggy" (porco político) com o sangue da vítima, numa alusão ao tema "Piggies", do "álbum branco". A intenção dos massacres Tate-LaBianca seria assim ilibar o seu "irmão", cometendo uma série de crimes semelhantes. Há ainda uma terceira possibilidade, que apesar de não contradizer a anterior, acrescenta-lhe outras personagens. Aqui a música ganha verdadeiro protagonismo, merecedor de um novo capítulo. O já referido Gary Hinman tinha apresentado Dennis Wilson, dos Beach Boys, a Manson, uma vez que este também era músico e queria iniciar uma carreira. Dennis ficou logo refém do seu hipnotismo. Quando o seu irmão mais velho, Brian Wilson, lhe perguntou o que é que ele tinha de especial, Dennis respondeu: "É muito persuasivo e cheio de poder. E anda com umas miúdas que fazem tudo o que ele quer". Mike Love, também dos Beach Boys, chegou a frequentar a "família" na esperança de participar de uma orgia, mas a imundície assustou-o e mais perturbado ficou quando Manson lhe entrou pela casa de banho dentro. Quanto a Brian, na altura a recuperar ainda dos excessos de drogas que o tornaram refém da psiquiatria, atemorizava-o as "más vibrações" do novo amigo do irmão. Um dia Dennis visitou-o, fazendo-se acompanhar pela "família". Brian fugiu para o quarto, mandou chamar o irmão e disse-lhe que queria aquela gente fora da sua casa. Dennis disse que já não podia fazer nada. Não podia fazer nada porquê? "Porque ele já está cá dentro", respondeu. A geração de músicos dos anos 60, pelo menos os mais informados, tinha um grande respeito pelos músicos do blues, a grande fonte do rock'n'roll. Não foi difícil simpatizarem com aquele "cota" dentro do espírito dos novos tempos mas com grande conhecimento das "raízes" americanas e da geração beatnik. Para além disso, era um renegado. Dennis Wilson foi no entanto quem mais se envolveu. Os Beach Boys preparavam o álbum "20/20" e cada um dos elementos precisava de apresentar novos temas, uma vez que Brian Wilson, o habitual compositor, era um caso clínico. Manson mudou-se para a casa de Dennis Wilson em Sunset Boulevard, gravou uma série de canções suas e entregou-lhe uma, "Cease to exist", em troca de um futuro contrato. Dennis queria adaptar o tema e Charlie só fez uma imposição: não mexer na letra. Mas a letra não só foi mudada como alterou o próprio título para "Never Learned not to love". Pouco tempo depois Manson e companhia foram despejados da casa de Dennis, que iniciara uma digressão, e até ficou a arder com o Rolls Royce que lhe tinha sido prometido. Escusado será dizer que não estava mesmo nada satisfeito. Para piorar, Terry Melcher, um dos empresários do circuito dos Beach Boys, acabou por desistir de gravar um disco de Charles Manson. Ainda surgiu a ideia de fazer um filme, para captar o seu carisma, mas nenhum projecto foi em frente. Dias depois dos massacres, a população da Califórnia estava em estado de choque mas a "família" ainda não tinha sido implicada. Dennis reencontrou Manson e perguntou-lhe por onde tinha andado. Este respondeu-lhe: "Estive na lua". E de facto, um dia antes Melcher acordara para descobrir que tinham mudado de sítio o telescópio da sua casa, na praia de Malibu. Manson gostava de perturbar as pessoas que o tinham desapontado e divertia-se a entrar nas suas casas e mudar os móveis de sítio. Se Melcher ficou perturbado com esta pequena brincadeira é porque adivinhava consequências mais graves. Com efeito, Melcher tinha-se mudado há pouco tempo e a sua casa anterior ficava em 10050 Cielo Drive. A última vez que Manson lhe fez uma visita, deparou com os seus novos inquilinos: o casal Polanski. Quando Sharon Tate foi assassinada e mais quatro amigos seus, Melcher não podia deixar de pensar que as vítimas eram circunstanciais, ele era o verdadeiro alvo. As clínicas psiquiátricas e os guarda-costas passaram a ser o seu refúgio. Quanto a Dennis, não ficou menos apavorado. Manson tinha sido preso por roubar um carro e quando foi libertado pediu-lhe dinheiro para se instalar no rancho Barker, no Vale da Morte. Pouco tempo depois mandou entregar-lhe uma bala: essa oferta assegurava-lhe um voto de silêncio e o beach boy nunca chegou a prestar declarações durante o processo Tate-LaBianca. Dennis Wilson morreria em 1983, num período de profunda depressão, dependência das drogas e ruína financeira. Mergulhou nas águas da Marina Del Rey, junto ao Harmony, o barco de um amigo, em busca dos "tesouros perdidos" do seu passado e já não regressou à superfície. Anos depois, durante uma entrevista, Charles Manson, comentou o destino fatídico do seu ex-amigo: "Ele foi morto pela minha sombra porque se serviu da minha música, não me pagou e ainda por cima mudou as letras das minhas canções". Qual ogre de "O Rei dos Álamos", Charles Manson acredita que o mal que lhe possam fazer reverte depois contra os seus autores: "Sempre que ultrapassam a fronteira, arriscam-se a perder-se nela. Isso não tem nada a ver comigo, mas com a minha sombra. Eu tenho uma sombra terrível, má". Esta auto-mistificação da sua maldade ajudou a construir o seu mito, para além da mediatização dos crimes em que esteve envolvido, das entrevistas que entretanto passou a dar, da correspondência que manteve, do fascínio mórbido de que ainda é hoje alvo, tanto pelos cultos satânicos como pelos grupos que pretendem ilibá-lo ou defendem o respeito integral da Constituição, que alegam o não cumprimento dos direitos devidos a Charles Manson pelo tribunal que o acusou e pelas instituições prisionais por onde tem passado. A causa mais vezes repetida tem a ver com o facto de não terem deixado que Manson se defendesse a si próprio em tribunal, direito que é concedido pela sexta emenda da constituição americana e que foi respeitado pelo primeiro juiz, Keene, mas que lhe foi retirado pouco depois. Quanto a Manson, depois de uma existência deslocada, afastada de tudo o que lhe poderia dar uma vida autêntica, colocou-se no centro do mundo: "Todos são Deus e tudo vai e vem para si próprio e isso é para sempre. Todos ganham porque não há vencedores nem perdedores. Não se pode ir a mais lado nenhum quando já se está lá. Não se pode ganhar nem perder quando nos afastamos do jogo e conseguimos discernir o grande jogo". Mas o contrário também é verdade para si: "Ninguém precisa de obedecer a não ser que pretenda ser um Deus. A lei da vida por si só concede o livre arbítrio. Nenhuma guerra teve fim e cada guerra foi sempre um passo para devolver as decisões a Deus". A sua visão da juventude chega a ser evangélica: "Deviam olhar à volta e enfrentar os vossos filhos e começar a ouvi-los. A música comunica convosco todos os dias, mas vocês estão demasiado cegos, surdos e mudos para deixarem de fazer o que têm feito". Sobre aqueles que o seguiram, também os usa como recriminação: "Essa miudagem que vos ataca com armas são os vossos filhos. Vocês é que os ensinaram, não eu (...) essas pessoas a que chamam A Família eram apenas pessoas que vocês não queriam, que andavam pelas ruas, que tinham sido expulsas de casa pelos pais e que não queriam ir para os reformatórios". Manson prometeu-lhes um paraíso, escondido numa mina no Vale da Morte, mas como cantou Leonard Cohen não havia diamantes lá dentro e o único refúgio que lhes proporcionou para escaparem à maldição que recairia sobre a humanidade foi a prisão. As canções que tem vindo a compor e gravar na cadeia estão invariavelmente ligadas à preocupação da sobrevivência e da necessidade de preservar a natureza, que define através da sigla ATWA (air, trees, water, animals). Este sentimento ecológico fica-lhe bem, o problema é quando começa a falar dos homens, da perseguição aos brancos, da vergonha de ser branco, da protecção aos negros , da "questão judaica" e da admiração que tem por Hitler, que considera um santo, porque para ele a guerra não é um crime e a Segunda Guerra Mundial não acabou: "Se disserem que a guerra é um crime, então o crime torna-se a vossa guerra e eu sou, qualquer que seja o ponto de vista, um prisioneiro de guerra. Sou um prisioneiro de guerra desde que em 1944 incendiei uma escola em Indianapolis. Desde que estou preso que tento perceber a razão de me ter transformado num criminoso e pouco importa que o queira ser... Há que manter os criminosos para manter a guerra porque esta é uma economia de guerra"."A minha mente é crime, a minha mente é prisão". Uma rapariga de 18 anos escreveu-lhe em 97 para lhe perguntar se conseguiria voltar a viver fora da prisão. Manson respondeu-lhe: "Onde quer que esteja, estou em todo o lado. Sou quatro lados em quatro caminhos terminais, intermináveis e iniciais. Tem calma, Carrie. Alguém te encheu a cabeça de porcarias. Cagaram na tua vida antes de nasceres. Tu és para sempre (...) quem me dera descobrir a linha que divide o que está dentro e o que está fora. Eu estou - de fora - ou dentro por baixo disto, deixaste a imprensa e a ganância distorcerem o teu cérebro. Fora do quê? Duas vezes dentro e duas vezes fora é um abraxas e isso é Deus e 2x2 é igual a quatro. Quatro cantos do universo."Apesar desta cavalgante dialéctica, Charles Manson não deixa de ser um encarcerado. E mesmo tiradas tão enfáticas como "pode-se passar uma vida inteira em frente a uma porta sem nunca tentar ver se está aberta" não o farão sair. É um Deus menor, aquele que afastou o mundo de si e afinal "Helter Skelter" era apenas a banda sonora do horror em que decidiu viver e fazer os outros sofrer com isso. Charles Manson esqueceu-se de esperar pelo álbum seguinte dos Beatles, aquele que terminava com a mensagem "e no fim, o amor que te derem será igual ao amor que deste".

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