De Lisboa ao Porto no "TGV"

De comboio do Porto a Lisboa em apenas duas horas? Essa é a meta dos comboios pendulares que estão prestes a entrar em funcionamento na linha do Norte. Mas para já, não. A partir da inauguração, marcada para 21 deste mês, se tudo correr bem, as principais vantagens para os passageiros terão a ver com o conforto. A PÚBLICA foi de Lisboa ao Porto e voltou, numa viagem experimental a bordo do novo "TGV" português.

Entra-se e parece que estamos num avião. O habitáculo é afunilado, as janelas são mais estreitas do que as dos outros comboios, a copa tem armários e carrinhos iguais aos do serviço de catering dos aviões, os assentos, de tom azul, são confortáveis e têm tomada para computador e botões para escolher o canal de música ou do vídeo. Neste, em écrans espalhados ao longo das carruagens, passam agora os desenhos animados do Rei Leão. São 10h08 quando a luz vermelha do semáforo passa a verde e o chefe dá a partida ao comboio pendular nº 22341 em "viagem de endurance" entre Lisboa e o Porto. Lá dentro viajam seis maquinistas em formação e técnicos da CP, da Fiat Ferroviária e da Adtranz, empresas que fabricaram o comboio. Ah! E também o Pedro e a Andreia, filhos de um dos maquinistas que, de auscultadores nos ouvidos vão lá atrás sentados a ver o Simba. Blocos em riste, os engenheiros vão tomando nota do comportamento do comboio. A viagem destina-se a tomar o pulso à imensa panóplia de equipamentos que constituem um comboio moderno. Pequenos incidentes indetectáveis para o comum dos mortais não passam despercebidos aos ferroviários que têm como função dar o OK à composição por forma a que esta possa entrar em serviço comercial no próximo dia 21 de Junho. "Se tudo correr bem", ressalva João Pereira, director de material da CP. Tudo depende agora das afinações que a Fiat tiver que efectuar. O mais stressado dos tripulantes é, precisamente, o engenheiro italiano que, via telemóvel, conversa com os seus congéneres transmitindo informações. Gian Paolo Fantino está especialmente preocupado com o sistema de pendulação que, de vez em quando, se desliga assim sem mais nem menos. Não é nada que ponha em causa a segurança dos passageiros, mas afinal é essa a principal característica do comboio - o facto de se inclinar nas curvas para não ter que reduzir a velocidade, evitando que as pessoas sejam sacudidas. É que mal passou as agulhas de Sta. Apolónia, a pendulação desligou-se, fenómeno que se repetiria durante toda a viagem, sem que se conseguisse estabelecer uma correlação com os motivos. Será do acelerómetro, do giroscópio, do software ou da suspensão lateral activa? Linguagem de engenheiro, que se sucederia durante toda a viagem, como quando, em Coimbra, entram dois técnicos da EMEF (Empresa de Manutenção de Equipamentos Ferroviários) preocupados com os "bujões magnéticos nos boggies" e estabelecem com o engenheiro Pereira um diálogo esotérico sobre os "primeiros filetes de rosca" e as "manilhas de cobre que tiveram de ir ao torno". Por enquanto, ainda mal saímos de Lisboa e deixámos para trás a estação do Oriente. À nossa frente temos um sinal que diz 160. O maquinista puxa o manípulo e deixa que um ponteiro suba até aos 160 Km/hora. O comboio acelera progressivamente e estabiliza na velocidade imposta. Ele próprio se encarrega agora, através de sistemas informáticos, de dar mais força ao motor nas subidas ou de frenar a composição nas descidas. Na cabine de condução, os três maquinistas, o seu inspector e o director de material estão maravilhados com a performance obtida - o comboio pendular mal trepida e desliza rápido e silencioso pelos carris, inclinando-se nas curvas para as "atacar" sem solavancos. Uma maravilha da técnica! O êxtase dura, porém, o tempo suficiente para percorrer os dez quilómetros entre a estação de Oriente e Alverca, em que a linha do Norte está modernizada com padrões de qualidade europeus, apta a receber comboios a 220 Km/hora. No resto da viagem até ao Porto só em mais dois curtos troços (um na zona de Albergaria e outro em Quintans) é que a composição voltaria a poder mostrar como é a sensação da alta velocidade. O resto da linha está em obras e, por isso, afrouxamentos, ou com troços que, enquanto esperam a modernização definitiva, acusam já alguma falta de manutenção. Quando entrar em serviço comercial, os comboios pendulares não deverão passar dos 140 Km/hora ou, quanto muito, darão um ar da sua graça a 160 Km/hora em curtos trajectos. As indefinições em torno da modernização do principal eixo ferroviário do país não permitem apontar qual a data em que estas composições farão Lisboa - Porto a mais de 200 à hora demorando apenas duas horas e 5 minutos para ligar as duas cidades. Só no conforto os passageiros irão ganhar. Como neste momento em que apetece dormir vendo o Sol reflectir no Tejo e o verde da lezíria à nossa volta. Cá dentro a temperatura permanece nos 21 graus, de acordo com o ecrã digital instalado em cada carruagem e que mostra também a temperatura exterior, a hora, a velocidade do comboio, a próxima estação e um "pedido de desculpas" pelo atraso. Desconfia-se que esta última mensagem será muitas vezes repetida quando os pendulares entrarem ao serviço. Para ouvir música há três canais à escolha, mais um quarto para o som do vídeo. Uma empresa contratada pela CP se encarregará de fornecer um pacote de CDs com músicas para todos os gostos. A cortina da janela sobe e desce obedecendo à simples pressão de um dedo nos botões. Os assentos são cómodos, o bar é espaçoso, as casa de banho são agradáveis, (ainda que demasiado pequenas), os espaços para deficientes obedecem a todas as normas europeias para pessoas com mobilidade reduzida, enfim, o comboio tem, decididamente, bom aspecto. Apetece dormitar, mas chegamos ao Entroncamento onde paramos pela primeira vez. Há que experimentar o sistema automático de abertura de portas. "É absolutamente seguro. Basta haver um peso no degrau e a porta já não fecha nem o comboio arranca", explica um engenheiro, apontando o local do sensor que identifica qualquer corpo estranho no degrau. De novo em marcha, agora com outro maquinista nos manípulos para "ganhar calo", o director de material prepara-se para fazer uma experiência. Ao quilómetro nº 140, perto do túnel de Caxarias, na rampa mais íngreme da linha do Norte, numa trincheira sombria e húmida, o comboio imobiliza-se. Trata-se de ver como se comporta quando arrancar agora a toda a força no início da subida. Com um velho cronómetro de bolso, João Pereira vai medindo o tempo enquanto o inspector lhe dita a velocidade. Em dez segundos passamos do zero para os 95 Km/hora e quatro minutos depois as 300 toneladas distribuídas por seis carruagens circulam já a 164 Km/hora! Logo de seguida o maquinista corta o esforço de tracção e a marcha reduz-se até aos 90 Km/hora, velocidade máxima autorizada no interior do túnel. Segundos depois, de novo à luz do dia, entramos no segundo troço modernizado e aceleramos aos 160 Km/hora. Os passageiros sentirão a diferença - por momentos a viagem é extremamente suave e até parece que estamos parados, não fosse a paisagem rural a deslizar rápida pelas janelas. Nos quilómetros seguintes a linha é bastante sinuosa e quem vai na cabine nota perfeitamente a pendulação do comboio nas curvas. Em certos passageiros tal pode mesmo provocar algum enjoo, de acordo com a experiência dos "pendolinos" que ligam hoje as principais cidades de Itália. De repente, à saída de uma curva, a estação de Alfarelos. O maquinista tem na sua frente a folha de marcha com as horas de passagem nas estações. Repare-se nesta precisão de ferroviário: "Era às onze e cinquenta e meio. São doze e quarenta e cinco. Levamos cinquenta e quatro minutos e meio de atraso". Nada de grave. Já encostámos várias vezes em ramais das estações para fazer medições e para observar alguns equipamentos. É uma viagem de ensaio, repetem os técnicos, temendo "o que os jornalistas vão escrever". Afinal, o que se pretende é que isto não venha a acontecer quando o comboio começar a transportar passageiros. E quando será isso? Em 21 de Junho? Resposta rápida do director de material da CP: "Tudo depende da capacidade do fabricante em corrigir os defeitos que aparecerem". Em Coimbra a paragem dura apenas um minuto. Quando a composição está parada é activada a música ambiente no seu interior, que se desliga automaticamente quando este reinicia a marcha. Até Aveiro é um pulinho e daí até ao Porto... O mais espantoso é, por alturas de Ovar, Espinho, Granja e Valadares, a quantidade de pessoas que faz da via férrea caminho. Apita o comboio aos incautos para que saiam da linha. Entre Ovar e Esmoriz estão algumas das maiores rectas da linha do Norte, onde, em Janeiro, foram feitos os ensaios de velocidade. Numa das primeiras viagens, feitas durante a noite e com as passagens de nível com segurança reforçada, o comboio não passou dos 217 Km/hora. Mas alguns dias depois, corrigidos "erros de juventude" do motor, batia-se o record de velocidade ferroviária em Portugal: 225 Km/hora! Agora o problema é a pendulação. Gian Paolo desespera sempre que esta se desliga. Chegamos ao Porto e o comboio recolhe às oficinas de Contumil para algumas afinações. Parte da tripulação vai almoçar. Outros contentam-se com umas sandes, vestem as batas e metem-se debaixo da composição embrenhados nos equipamentos. Ao nível da informática, um comboio moderno tem praticamente tantos quilómetros de cabos como um Airbus. O regresso inicia-se também com alguns minutos de atraso. De tal modo que em Esmoriz recebemos ordem do posto regulador (que comanda a circulação do tráfego) para encostar numa via de resguardo a fim de sermos ultrapassados pelo Alfa. Como em todas as estações, a presença de tão invulgar comboio faz pasmar quem o vê. "Isto é que é um Tê Gê Bê, carago", grita um miúdo. Hilariante será a reacção da vendedeira de tremoços em Alfarelos. Sem atinar com o diagnóstico da "não pendulação", o engenheiro italiano pedira para imobilizar o comboio durante algum tempo numa estação. Como em Coimbra não havia linhas disponíveis, somos desviados para um ramal em Alfarelos. A coisa dura meia hora e mete intervenções com chaves de fendas nos painéis do comboio. Às tantas, durante um ensaio o comboio começa a pendular, abanando-se para a esquerda e para a direita. Ao ver fenómeno tão raro, a mulher que há anos assenta arraiais em frente à estação grita: "Ai senhores que o comboio vai cair!" Com tanto atraso, a paragem é oportuna. Os maquinistas, que têm vindo a conduzir por turnos, aproveitam para comprar farnel numa tasca em frente. No bar do pendular, onde dentro de alguns dias serão servidas assépticas refeições plastificadas a executivos da primeira classe, faz-se agora um petisco de frango assado, pão caseiro e cerveja sem álcool. É que por este andar nunca mais chegamos a Lisboa e a hora do jantar já era. Dentro em pouco estão todos a ligar para casa a dizer que chegam mais tarde que o previsto, coisa que já nem a mais intransigente das esposas estranha. Nesta profissão de maquinista chegar atrasado a casa é a coisa mais natural. Gian Paolo é agora um homem contente. Viajamos há meia hora sem que a pendulação desligue. Mas ao chegar ao Entroncamento o fenómeno recomeça e o italiano não esconde a sua decepção. Cada dia que passa são 2500 contos que a Fiat tem de pagar à CP pelo atraso na entrega das composições. Com mais de um ano de atraso, consta que a penalização já atingiu o seu máximo: 2,5 milhões de contos. Ou seja, um dos dez comboios fabricados deverá sair à borla para os caminhos de ferro portugueses. Este material foi adjudicado à Fiat Ferroviária após um concurso que, na fase final, a opôs à multinacional sueca ABB. O comboio foi fabricado em Itália, mas parte da montagem e da electrónica foram adjudicadas à Adtranz Portugal (ex-Sorefame) e à Siemens. "A recepção de um comboio por parte da CP tem início na própria linha de montagem. Há inspectores nossos em permanência na Sorefame que acompanham a montagem e fazem já alguns ensaios", explica João Pereira. Depois verifica-se que a composição tem o equipamento todo e que as funções vitais estão operacionais, passando-se depois à fase dos ensaios de linha. Estes foram feitos no Poceirão, com algumas deslocações até Coruche para testar o seu comportamento. A fase final são os "ensaios de endurance", feitos já na linha do Norte em condições próximas do que será o horário comercial. "Isto é um comboio muito complexo, devido sobretudo à pendulação, que é um sistema que neste momento ainda está um pouco imaturo", prossegue o engenheiro, desdramatizando o problema. Ele próprio, enquanto cliente, só dará o OK quando tudo estiver em condições. Passa das 22 horas quando chegamos a Santa Apolónia e abandonamos o pendular num ramal afastado do cais da estação. O pessoal programa a agenda para o dia seguinte, para mais uma jornada de testes.

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