Torne-se perito

Faial, uma ilha "fechada" para obras

O sismo que abalou metade do grupo central açoriano foi há um ano: de lá para cá mais de três mil pessoas tentam refazer a sua vida, "empacotadas" num pré-fabricado ou amontoadas em casa de familiares. Perdeu-se quase tudo, menos o orgulho. A ilha do Faial está em obras, com a população a desesperar devido ao longo caminho burocrático que é preciso seguir para poder refazer a vida.

Já passaram 12 meses, mas ainda há quem se assuste quando um camião passa na rua, imponente, normalmente carregado de materiais de construção, e faz tremer as paredes no Faial, Açores: ninguém esqueceu os dias que se seguiram ao 9 de Julho de 1998; basta o dia e o mês para que todos saibam do que se fala. Às 5h19 (mais uma hora em Lisboa) um sismo de magnitude 5,8 na escala de Mercalli abanou violentamente a ilha, levou oito vidas e deixou mais de três mil pessoas sem tecto. Começou aí um verdadeiro calvário. Primeiro foi o relento, depois uma tenda da Protecção Civil, mais tarde um pré-fabricado. Irá seguir-se uma casa, finalmente "a casa", apesar de ninguém poder garantir quando. O governo regional espera que dentro de três anos esteja tudo normal. "Muito tarde", tem gritado a oposição mês após mês, no Parlamento regional, cuja sede fica precisamente na cidade da Horta, a capital da ilha e um dos pontos menos afectados. "Foi uma sorte", comenta-se nas ruas; caso contrário, "teria sido uma verdadeira tragédia". Na cidade da Horta, de facto ninguém diz que 12 meses antes se viveram horas dramáticas. As poucas obras de reconstrução confundem-se com os trabalhos normais em qualquer outra cidade. No Café Peter, um dos mais conhecidos do mundo, os iatistas estrangeiros continuam a engolir "gin" atrás de "gin". Os turistas parecem não se ter assustado com o sismo. A confirmá-lo estão as estatísticas: a marina da Horta prepara-se para bater mais um recorde anual de presenças; a TAP já anunciou que nos primeiros três meses do ano o movimento de passageiros aumentou 90 por cento. A Mostra Atlântica de Televisão, um festival organizado pela RTP-Açores, que este ano decorreu no Faial, teve de ser antecipado duas semanas por manifesta incapacidade hoteleira para receber todos os participantes. É quando se dá uma volta pela ilha que se começa a notar os efeitos do tremor de terra. Além dos muitos terrenos com alicerces à mostra, a deixar adivinhar que antes existia ali uma casa, para lá das centenas de pré-fabricados, muitos ao estilo de aldeia para sinistrados, verdadeiros aglomerados com seis ou sete famílias a viver em conjunto no mesmo terreno, irrompem um pouco por todo o lado, estilo cogumelos, as placas de aviso municipal a anunciar a autorização para a "construção de habitação". Até parece que toda a população do Faial decidiu, subitamente, construir uma casa nova. Não fossem os dramas humanos, as vidas semidesfeitas, e o sismo poderia ser descrito como um verdadeiro motor económico: numa ilha que agonizava por ser a mais cara do país, que perdia peso político ano após a no e que parecia cada vez mais distante do desenvolvimento de Ponta Delgada (São Miguel) e Angra do Heroísmo (Terceira), o abalo de terra trouxe mais do dobro do investimento público; além disso, fez aumentar o número de visitantes e de mercadorias a entrar na ilha; o desemprego diminuiu. Estão em construção novas pontes, a ser melhoradas as estradas existentes e o executivo regional, segundo José Contente, secretário da Habitação e Equipamentos, espera conseguir "renovar quase por completo todo o parque habitacional". Tal como na Terceira em 1980, onde o sismo chegou ao grau sete da escala de Richter, passada a crise, adivinham-se anos de progresso. A Terceira tem servido, aliás, de termo de comparação para quase tudo. A reconstrução feita em 1980, na altura governava o PSD, tem sido comparada com actual, da responsabilidade dos socialistas, pela primeira vez no poder após duas décadas de regime autonómico. A diferença de critérios tem constituído a principal base para o arremesso de argumentos. Do lado do PSD justificam-se alguns excessos ocorridos em 1980 com "a urgência em dar uma vida normal a todos os que ficaram sem casa"; o presente governo regional tem explicado o tortuoso "caminho burocrático" escolhido com a necessidade de "moralizar" todo o processo. É que actualmente em Angra do Heroísmo por cada dez sacos de cimento distribuídos pelo menos quatro terão tido um destino abusivo. "Nem um único saco de cimento fora de controlo", tem argumentado José Contente invocando a "nova era política distante dos apadrinhamentos e dos conluios políticos". O resultado é que um ano depois do sismo já se concluíram metade das pequenas reparações, mas ainda não foi construída uma única casa de raiz. Devido ao arrastamento das obras, muitos sinistrados fizeram das visitas ao Centro de Promoção da Reconstrução (CPR) - o organismo criado pelo executivo para coordenar todo o processo e de longe a entidade oficial mais atacada de sempre devido à alegada inércia dos seus funcionários - a rotina semanal e desesperam com a contínua falta de informação. Há um mês atrás o PÚBLICO apresentou uma reportagem com as críticas de vários sinistrados ao CPR e cerca de uma semana depois foi anunciada a realização de reuniões individuais com todas as famílias afectadas pelo sismo. Nos acampamentos, no entanto, as pessoas continuam a preparar-se para uma longa estadia nos pré-fabricados. É o caso de Manuel Moniz, que o PÚBLICO encontrou com a família à soleira da porta a aproveitar o bom tempo que se fazia sentir. "Também, se estivéssemos todos lá dentro quase que não cabíamos", comenta, visivelmente descontente com o pouco espaço que tem para dividir com os seus. A família Moniz adaptou-se aos "tempos modernos". Pouco satisfeita com a transição, porque "quem já teve uma casa não se conforma com isto [pré-fabricado]", foi adaptando o espaço ao seu gosto pessoal. Além da decoração interior, feita com "as mobílias que lá conseguiram entrar", nasceu mesmo à frente da porta um pequeno pátio de cimento com um muro cuja altura não ultrapassa um metro. É pequeno, mas "tem outra dignidade". Serve para a família passar melhor os dias e para o neto "dar umas pequenas voltas na bicicleta", há pouco adquirida. Afinal, "o rapaz também tem direito a uma infância normal, não é?"

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