Sonhava ser uma senhora "como deve ser"

Aos 19 anos, Maria Paula foi Clara, a irmã "má" da pobre Margarida das "Pupilas do Senhor Reitor", mas nem acabou as filmagens porque foi parar ao hospital, em risco de vida com um tifo. A carreira no cinema teve só mais um filme, o "Pátio das Cantigas", mas depois fez todo o tipo de teatro durante anos e anos - no Teatro Nacional, no Monumental, em tournées pelo país todo. A cantar e a tocar piano em bares e restaurantes prolongou esta vida de espectáculo, com um êxito muito especial no "Botequim" depois do 25 de Abril - era muito amiga de Natália Correia. Esta é uma testemunha de um século muito especial, um século vivido num mundo fechado onde nem a II Guerra deixou lembranças ou preocupações. Um tempo de histórias divertidas e extravagantes, sempre contadas num falso ar sério que termina em grandes gargalhadas. As partidas, as situações bizarras, as "maluquices", como ela própria diz, num mundo povoado por gente que "conhecemos" desde sempre: Maria Matos, Palmira Bastos, António Vilar, Vasco Santana, Beatriz Costa, Maria Lalande, e a pairar acima de todos, Amélia Rey Colaço. O lugar de maior amigo pertence a João Villaret.

Aparece com um ar radioso, como se estivesse e entrar em cena, impecável e sobriamente vestida. Tem batôn, os olhos um pouco pintados, mas a pele da cara é radiosa, sem sinais de pintura. Nada daquelas camadas de base com que se tenta mascarar a idade. E dirá várias vezes na conversa que tem 83 anos.A entrevista avança, as horas passam, as gargalhadas são mais do que muitas. Maria Paula Rosado Couvreur de Oliveira, Viana de Carvalho por casamento, não se lembra de uma data, excepto a do aniversário: 29 de Julho. Se fecharmos os olhos quando ela imita a voz de alguém, estamos a ouvir a voz de outra pessoa. Principalmente quando imita Amélia Rey Colaço, a mulher que, apesar de a ter fascinado, nunca conseguiu convencê-la a dedicar-se ao teatro ou ao canto "a sério". Vai dizer a propósito de tudo o que aconteceu ao longo destes 83 anos: passei pela vida sem dar atenção a nada.Aprendeu a ler em Santo Amaro de Oeiras, onde vivia, e felizmente o colégio era misto: "Era muito mais divertido com rapazes e raparigas".Tocava piano, tocava até órgão na igreja de Porto Salvo (mas tão pequenina que não chegava aos pedais) e cantava, e dançava. Foi para o Conservatório estudar piano mas era pedir-lhe muito: estudar solfejo, composição, francês e, sobretudo, ler a música pelas pautas. Se o ouvido bastava para resolver isso tudo, para quê tanto esforço?E depois havia a praia, em Santo Amaro, e ela tinha um fato de banho branco, com saia, que lhe ficava tão bem. Púdico, sempre tudo muito bem tapado: conseguiu trabalhar uma vida inteira em cinema e teatro, passando pela revista, e nunca mostrou nem sequer as pernas.Mas era uma rapariga muito metediça, muito mexida, e à conta de tanta animação começou a carreira com um filme de onde saiu para o hospital: deixou infectar uma ferida num pé, apanhou uma febre tifóide. E passou a ser a "Clara" das "Pupilas do Senhor Reitor" realizado por Leitão de Barros em 1935. As telefonistas da zona onde vivia eram uma espécie de gabinete de informações sobre o estado de saúde da Maria Paula, tinham as linhas entupidas de telefonemas de admiradores.Ainda hoje, conta, é reconhecida em todo o lado. "Olha a Maria Paula", e recebe e dá beijinhos a pessoas que não conhece mas que sabem muito bem quem ela é.Teve admiradores persistentes, pretendentes, a família ia tentando arranjar-lhe um casamento que a tornasse uma senhora. Havia um que lhe mandava todas as tardes para o Teatro Nacional um cesto com bolos e frutas, para delícia dos colegas actores com quem combinava partidas e maluqueiras - eles sabiam aproveitar a capacidade dela para imitar vozes.Casou-se duas vezes, mas a ultima paixão era "um homem que não podia casar-se comigo", com quem foi feliz e cuja ausência a deixou "desasada". Não teve filhos mas dedicou-se à família e a uma sobrinha em especial, de quem tem uma "neta" chamada Paula que estuda actualmente teatro em Londres.Fala com saudades de muitos colegas, com respeito e carinho, mas quando chega ao momento de falar no plural as coisas complicam-se: "As actrizes, não sei lá porquê, não me adoravam. Tratavam-me muito bem, mas dizer que eram muito minhas amigas, não eram. A não ser a Josefina Silva, que gostava muito de mim, assim umas que gostavam de mim. Mas amigos actores sim."Enfim, "É sempre muito difícil oficiais do mesmo ofício darem-se bem. Mesmo entre amigos, há uma rivalidadezinha porque o teu papel é melhor que o meu, aquele disse que eu ia melhor que tu. Não pode haver uma amizade sólida, é um meio de competição."Quem metia respeito mesmo a sério era a Senhora Dona Amélia, que só perdeu mesmo a paciência naquela matinée em que tinha vindo de um casamento, estava um pouco tonta, atou mal os cordões que prendiam as pesadas asas de Anjo, e em frente à "Alma" (Maria Lalande) Maria Paula ficou de repente sem asas ao som de um trovão. Gil Vicente talvez tivesse achado graça a esta versão tão estrondosa do "Auto da Alma", mas Robles Monteiro e a mulher não apreciaram a graça e mandaram fechar a cortina. Quem é que manda fazer tantas saúdes nos casamentos?A família habituou-se a esta excentricidade toda, mas tinha já casos especiais na colecção: o avó era o Almirante Brás de Oliveira, um apaixonado das coisas náuticas que deixou uma extensa obra e que tem retrato no Museu da Marinha; a paixão passou para o filho, que preferiu a marinha mercante e deu a volta ao mundo - enchendo serões com conversas sobre o que tinha visto nas viagens. A tia Germana Couvreur de Oliveira também tinha uma vida invulgar - foi a primeira jornalista portuguesa, trabalhava até altas horas da noite no "Século". A irmã Mariazinha ainda hoje faz parte do Coro do Teatro de São Carlos. E Maria Paula, que insiste para que tomemos um chá, uma limonada, um chocolate, uma fatia de bolo, diz simplesmente que a vida dela derivou (vai buscar a palavra às conversas náuticas) do rumo que sempre sonhou: ser uma senhora da sociedade, a fazer chás com as amigas em conversas sobre os filhos.

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