O cristal de Siza

Que Siza é um génio, já sabíamos. O que há de novo é que agora podemos todos fruir do que esse génio proporciona. No caso, de um espaço que nos projecta para fora de nós mesmos e nos eleva, ao mesmo tempo, a estados de espírito a que de outro modo não teríamos acesso.É isso que acontece com o museu de Serralves. E para todos os que possam crer que o grande prestígio internacional do arquitecto lhe vem de uma espécie de apoio de algum "lobby" constituído para o efeito, a presença próxima do novo museu constitui o mais vivo desmentido.Dir-me-ão: mas qualquer outro arquitecto poderia ter concebido o museu. É verdade. Mas não assim. Não nesta escala, não nesta justa proporção, não nesta subtileza de formas que parecem quase imateriais ou que, de outras vezes, se nos revelam na extrema plasticidade e dinâmica que lhes permite encetar os melhores diálogos com o espaço envolvente.Comoveu-me ver o museu pela primeira vez. A sua entrada discreta, para a qual parece quase que somos absorvidos, como se para entrar num outro universo. A justeza dos espaços, a sua claridade e a sua serenidade. O modo como os volumes entre si se articulam. A fluência da luz naqueles espaços. O modo como os jardins parecem quadros, quando observados das janelas. Admiráveis paisagens, de resto, como nem sabíamos haver. O modo como se redesenharam os jardins. A lição de justeza e de harmonia.Tudo isto é muito, é mesmo, talvez, demasiado. Não estávamos habituados, senão de ouvir dizer. Poder vivê-lo agora no próprio coração da cidade é um privilégio raro, um elemento novo que transforma, decisivamente, a cidade e o próprio país.Não sei se o merecíamos, habituados que estamos a apequenarmo-nos com ridículas polémicas domésticas. Mas temo-lo, o que decerto virá a contribuir para nos tornar melhores. Tal como os grandes romances, as grandes obras de arte, os grandes filmes. Dão-nos uma dimensão maior que a nossa. Há também os que pensam que Siza, arquitecto exemplar, não é o indicado para desenhar museus. Que os seus espaços são arquitectonicamente tão fortes que constrangem as próprias obras de arte. Que quase determinam quais podem, ou não, entrar.Ora eu acho que um museu é também um filtro. Que toda a arte vista - devida aos seus directores, aos seus comissários, aos seus espectadores também - depende de escolhas sucessivas, porque toda a cultura é, sempre, uma escolha. Uma separação de águas. Isto em vez daquilo.Não sei por que é que o arquitecto não haveria de participar também nesta escolha. Tornando determinante que algumas obras aí possam alojar-se e evidenciando, pelas suas formas, que outras já não serão tão bem-vindas. Ou que se adaptem.Um museu, para ser coisa viva, não pode ser um espaço neutro. Pode e deve ser um espaço de interferência, capaz de se relacionar com as obras que acolhe. Este fá-lo de forma tão admirável que já o colocaria, sem pejo ou hesitação, entre os grandes museus do mundo destinados à arte actual. Um dos poucos. Dos raros.Ele ajuda-nos a compreender a natureza da arte. A evidenciar a sua função mais misteriosa. Disciplina o nosso olhar, dando-lhe um ângulo que o enriquece. Como um lupa que torna tudo mais nítido, como uma lente, como um cristal.O museu de Siza é um cristal. Um admirável cristal que cintila e que refracta a luz do nosso olhar e a luz das próprias obras. Que as torna mais luminosas, mais verdadeiras.Este museu - como quase tudo em Portugal - só chegou atrasado. Se o tivéssemos tido há vinte ou trinta anos, seríamos outros do que fomos, e outra também seria a nossa arte. Mas que agora exista e como existe, é facto suficiente para rejubilar. Sabendo desde já que tudo, no futuro, haverá de ser diferente. Melhor. E que, enfim, a arte portuguesa poderá projectar-se de outro modo nos destinos maiores da decisão. Porque uma casa assim será disputada por todos, desejada por todos. Não haverá grande artista vivo que aí não queira, um dia, expor. Honrar-se assim.E se o museu é coisa maior do que as obras que aloja, isso também é bom porque é uma forma de desafio. Porque por aí se constitui um plano de exigência, um patamar de conversa que só pode ajudar a elevar os níveis daquilo que se faz. Quem não compreender isto não há-de compreender nada.Virão de longe para ver o museu de Siza e de Serralves, como dantes se ia ao Cairo, ou a Atenas, para ver as grandes obras. As coisas são feitas deste modo.Para quem, como eu, dedicou alguma parte da sua vida às coisas da arte, esta presença que aterrou, aqui junto à porta, é um prémio e um momento sublime. Que se ficará, para sempre, a dever ao génio deste homem, e à inteligência daqueles que, em boa hora, lho souberam encomendar. Sejamos só capazes de merecê-lo.*crítico de arte

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