A música das palavras

A similitude entre tocar piano e escrever (um romance) no computador (ou máquina de escrever). Assim é, neste último livro de Teolinda Gersão - que é muito mais.

Por princípio, um título (de um livro, capítulo, artigo) deve indicar a matéria tratada e é com prazer que descobrimos esse princípio de ordem em acção (espécie de chave que nos faculta o acesso a um mundo desconhecido). Mas, por vezes, os títulos são enganadores: chaves falsas que não abrem portas ou chaves verdadeiras (autênticas) que nos fazem cair em emboscadas (a descoberta de simulacros a afastar-nos da busca dos verdadeiros tesouros escondidos).O título do último livro de Teolinda Gersão, "Os Teclados", é um bom exemplo de título que oferece uma inteligibilidade "prêt-à-porter" a facilitar um resumo da narrativa. Algo do género: trata-se da similitude entre tocar piano e escrever (um romance) no computador (ou máquina de escrever), os teclados ao serviço da analogia. E de facto assim é. Mas é muito mais e o título pode tornar-se a tal chave enganadora.Há, por um lado, a reconstituição da vida de uma rapariguinha no seio de uma família provinciana, as pequenas grandes violências domésticas, as vergonhas, a exclusão, a prepotência, os silêncios, a loucura. E também as suas adjacências: Ireninha, a menina condenada a dar-se em espectáculo como a trapezista Maciel; o professor itinerante de piano, Palrinha, a passear a sua tristeza e solidão pela casa das freguesas; Lúcia, a colega nova que "caminhava um degrau acima" e tinha uma casa e uma família que respirava alegria e frivolidade; o professor de matemática que, por entre o fumo dos cigarros, se faz porta-voz das velhas teorias pitagóricas. Tudo a servir de enquadramento ao processo de crescimento de Júlia, a protagonista e ponto de focalização da narrativa, que pode ser lida como um breve romance de formação.Mas, por outro lado (e é isso o mais interessante), a narrativa constitui-se também como o lugar de aparecimento de uma teoria sobre a ordenação do mundo, da obra.A música (as vozes das coisas), que o ouvido capta, é a chave que permite aceder à ordem do mundo e afastar o caos (provisoriamente). E a chave-clave torna-se a palavra mágica que dá sentido a todo o narrado. Mozart, por quem Júlia rezara em criança, é a primeira chave: a simplicidade aparente que deixa transparecer as coisas. Depois, há o tio louco que esconde as chaves e se torna o lugar de revelação do desligamento que é a loucura (a loucura que trabalha e liga também os considerados não loucos). A entrevista da escritora é mais um elo na cadeia de inteligibilidade que a chave-música abre: os romances, tal como a música, uma forma de medir e de organizar o tempo. Por fim, o professor de matemática, Rogério Souto, a dizer o princípio de harmonia que rege a música e o cosmos e a reforçar a intuição inicial de que "a música era o princípio de tudo, a expressão de poderes superiores que governavam o mundo."A exploração das teclas do piano abre caminho para o sem limite que a música abarca, a imensidão do mundo contida nas sete oitavas, e o susto de se sentir jogada: "Julgava brincar com o teclado, mas era o teclado que brincava com ela." E o teclado imaterializado (copiado em papel vegetal) é mais um passo no percurso iniciático de Júlia em direcção à compreensão do mundo, à compreensão de si própria. Uma compreensão dolorosa que a escritora da entrevista resumia, rindo: "(estar presa ao teclado) talvez fosse uma forma de perder o seu tempo e a sua vida. Ou também de ganhá-los - o problema é que nunca se sabia." A liberdade paredes-meias com o determinismo, o teclado (do piano, do computador) a servir de instrumento (chave transparente) para domar o tempo, organizá-lo: "Não importava o que se tinha pela frente, o teclado, o mundo, o Minotauro ou a esfinge. Algumas pessoas eram feitas para desvendar enigmas, passariam a vida a tentar." (p. 56)A dolorosa aprendizagem do mistério das coisas ("O Mistério das cousas, onde está ele?", pergunta Alberto Caeiro), salda-se pela descoberta do vazio de sentido ("Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto nenhum", responde) e sua aceitação: "Aceitar o nada, o mundo vazio." E apesar disso, sentar-se e tocar (escrever), os teclados a fornecerem a chave de acesso ao possível milagre (lembrar que 'teclado', em francês, se diz 'clavier', do latim, 'clavis', raiz de 'chave' e 'clave'): "O trabalho sobre o teclado era porventura a transcendência que restava? Tudo se reduzia então a um mundo deserto, onde cabia no entanto uma exigência de rigor que era uma forma de virtude, a sua forma de virtude - como tinha dito a do outro teclado?" (p. 94)A descoberta do acaso (a morte fulminante do professor antecedida pela descoberta do carácter efémero do domínio da mão sobre o teclado), da solidão, da ausência de respostas. Mas, também, a profecia de Thomas Huxley: o macaco incansável, capaz de escrever à máquina (ao computador) durante milhões de anos e que acabará por compor, sem disso se aperceber, o Hamlet, da primeira à última linha. O acaso a manifestar a ordem e a abrir-se à transcendência.

Sugerir correcção