História(s) da arte

"Circa 1968", exposição inaugural do novo Museu de Arte Contemporânea de Serralves, é um autêntico manifesto da(s) História(s) da Arte. Assim, no plural, como na memória do cinema reconstruída por Godard. Aqui fica um roteiro para uma visita a uma mostra que se apresenta como um notável contributo para superar o desconhecimento existente em Portugal relativamente aos sobressaltos que atravessaram a arte nos últimos 30 anos. É inaugurada no domingo, com pompa e circunstância, mas o público só a poderá ver na terça-feira.

A exposição inaugural do Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS), "Circa 1968", é um manifesto em nome da arte, dos artistas e de um contexto onde o estatuto do objecto artístico sofreu um dos seus mais fortes abalos, porventura só comparável ao sismo provocado pelas vanguardas do início do século. Esta mostra, pela sua dimensão e pelos trabalhos nela incluídos, constitui ela própria um salto em frente relativamente ao panorama expositivo nacional, permitindo fazer reavaliações de percursos e promovendo, quando possível, o confronto entre os criadores portugueses e os seus pares estrangeiros. História(s) da arte, assim, no plural, tal como a memória do cinema reconstruída por Jean-Luc Godard. O percurso de "Circa 1968" - que é comissariada por Vicente Todolí e João Fernandes, respectivamente director e director adjunto do MACS - é organizado sobretudo a partir das afinidades interiores existentes entre os diversos artistas representados na exposição. A montagem não é nem cronológica, nem procura agrupar os nomes a partir dos movimentos com os quais são habitualmente identificados. A mostra desenvolve-se por fluxos e intensidades, oferecendo um novo olhar sobre obras realizadas de 1965 a 1975 - com especial ênfase no período situado entre 1967 e 1973 -, que ainda hoje não perderam a sua capacidade de surpreender. A viagem proposta obedece a ritmos e impulsos gerados pelos trabalhos: são as peças que dialogam directamente com o espectador. Este é convidado a partilhar as questões que há cerca de três décadas andavam no ar. E dessa forma compreender melhor a essência da arte: a liberdade de experimentar novos caminhos quando tudo parece esgotado; deslocando, por um lado, os centros de atenção e, por outro, criando novos espaços de liberdade e de resistência ao mercado.Entre-se então no MACS, uma obra etérea de Siza Vieira, e percorra-se o trajecto que leva até à sala onde se apresenta a primeira exposição comissariada de arte conceptual: "Working Drawings and Other Visible Things On Paper Not Necessarily Meant To Be Viewed Art" (1966), do norte-americano Mel Bochner. Uma exposição dentro da "Circa 1968", que lhe acentua os sentidos. Uma mostra de quatro livros, cada com 100 fotocópias de trabalhos realizados por diferentes artistas. Colocam-se as primeiras perguntas: quem é o autor da obra? (questão da autoria) As reproduções constituem em si um trabalho? (questões da originalidade e da autenticidade). Colocados sobre um plinto, os livros-arquivos podem ser também interpretados como uma crítica à fetichização dos objectos escultórico e pictórico. Todo um programa está contido nesta mostra, programa esse sublinhado por outra criação de Bochner vizinha de "Working Drawings...": "To Count Intransitive" (1972). Feita com sabão sobre vidro, esta contagem numérica cria uma interferência no espaço arquitectónico, interpelando-o e desafiando-o a responder: quem está primeiro, a obra de arte ou o edifício?A viagem prossegue até junto de "Viewing Station #1" (1967), de Dennis Oppenheim. O visitante deve subir a plataforma e a partir dela ver os trabalhos próximos, como "Recall" (1974), também de Oppenheim, "Ubermalte Decke" (1968), de Polke, e "Steel Channel Piece" (1968), de Bruce Nauman. Pintura, vídeo, escultura e instalação sonora contaminam-se entre si e anunciam a diversidade de "Circa 1968", ou seja, cerca de 1968, o ano simbólico de todas as revoluções. A da "arte povera", por exemplo, um termo em 1967 cunhado pelo crítico de arte Germano Celant para definir uma série de artistas que então realizavam obras com materiais ditos "pobres". A sala central da exposição - que se poderia intitular como "a paisagem como auto-retrato do artista", ou "a matéria reencontrada" - é quase totalmente ocupada por nomes deste movimento: Mario Merz, Giovanni Anselmo, Gilberto Zorio e Jannis Kounellis. Em diálogo com os trabalhos destes criadores mostram-se peças de Reiner Ruthenbeck, Álvaro Lapa ("As Profecias de Abdul Varetti, Escritor Falhado", um trabalho formado por 22 elementos em lona com frases bordadas que, desde a sua primeira apresentação pública, em 1972, nunca mais tinha sido visto na sua totalidade) e Lawrence Weiner. O público pode agora deslocar-se até às duas grandes salas com as famosas mesas invertidas no tecto - uma solução formal encontrada por Siza Vieira, que serve para diversas funções, como a da iluminação. Na primeira foram instaladas obras de Richard Serra, Richard Tuttle, Robert Morris (um notável trabalho em feltro, de 1967, adquirido recentemente pela fundação portuense), Richard Artschwager, Blinky Palermo, Mel Bochner e Eva Hesse. Note-se que "Circa 1968" é uma mostra formada não só por obras da colecção de Serralves, mas também inclui peças quer depositadas por artistas ou fundações (como a Luso-Americana para o Desenvolvimento), quer provenientes de coleccionadores privados, quer de algumas das principais galerias de arte contemporânea, entre as quais as nova-iorquinas Marian Goodman, Sonnabend, Michael Werner (também estabelecida em Colónia), David Zwirner, PaceWildensteinMacGill, a londrina Anthony d'Offay e a milanesa Christian Stein.Entre-se no próximo espaço, onde predomina a fotografia ou trabalhos em que este meio é utilizado. Citem-se os nomes de Christian Boltanski, Helena Almeida, Gilbert & George, Julião Sarmento, Alberto Carneiro, Bernd and Hilla Becher e Jonh Baldessari, de quem se mostram três das catorze pinturas da série histórica "The Commissioned Paintings" (1969-70). Nestas obras, o artista pediu aos seus amigos que tirassem fotografias enquanto apontavam para objectos interessantes encontrados durante um passeio. Depois, Baldessari pediu a 14 pintores de domingo que reproduzissem sobre tela as imagens obtidas. Sobre cada um dos trabalhos foi também inscrito o nome do pintor que o executou: "A Painting by Anita Stork". E assim foram expostos. Uma vez mais está aqui em causa a questão da autoria; este conjunto de trabalhos procuram igualmente ironizar com Al Held, um pintor associado ao crítico formalista Clement Greenberg, que um dia afirmou: "Toda a arte conceptual é apenas apontar para coisas".Chega-se então a um dos núcleos mais significativos da exposição: o dedicado à obra do alemão Lothar Baumgarten. Numa sala é mostrada a projecção de 187 slides, com banda sonora, "Gosto Mais de Estar Lá do que em Vestefália, Eldorado" (1968-1976), que se baseia no livro "Cândido", de Voltaire. Noutra, encontra-se uma selecção do "Arquivo", uma espécie de depósito de imagens de todos os trabalhos realizados pelo artista desde os anos de aprendizagem na Staatliche Kunst-akademie de Düsseldorf, em finais dos anos 60, até hoje. Finalmente, num terceiro espaço, apresentam-se fotografias e "Termiten Savanne" (1969), um trabalho em madeira e pigmento, que representa uma imaginada topografia da América do Sul.A viagem tem agora que retroceder. Percorra-se o corredor novamente em direcção à "Viewing Station#1, de Oppenheim. Nas paredes vêem-se obras predominantemente acerca da paisagem. A fotografia é novamente o meio em destaque: Hamish Fulton, Richard Long, Fernando Calhau, Victor Pomar, Gordon Matta-Clark, Cildo Meireles e, no fim, uma admirável conjunto de trabalhos de Robert Smithson, entre os quais "Four Sided Vortex" (1967). Depois, antes de continuar o percurso pelas salas de maior dimensão que levam o visitante até aos pisos inferiores, este pode observar alguns espaços mais fechados, com obras genericamente sobre o tema do corpo de David Lamelas, Imi Giese, António Manuel, Antoni Muntadas (o projecto "Confrontations T.V.", 1973-74), Adrian Piper, Francesc Torres e Dan Graham, de quem se sublinha a instalação cinematográfica "Body Press" (1970-72).Após a experiência corporal, o confronto com o "Pequeno Muro de Trapos" (1967), de Michelangelo Pistoletto, já antes visível para quem seguir o trajecto aqui proposto. A situação política de então potenciava os significados deste colorido obstáculo, que faz, no percurso, um corte com a sala central do MACS. Na mesma sala, Keith Sonnier, António Palolo, Ângelo de Sousa e Neil Jenney, que faz, juntamente com um tríptico de Susan Rothenberg ("Mary", 1974), a transição para o espaço onde se coloca a questão: O que é a pintura? Ali encontram-se os alemães Gerhard Richter, Georg Baselitz, Jörg Immendorf e A. R. Penk e o belga Marcel Broodthaers. Na intimidade de uma pequena divisão adjacente a este espaço são mostradas obras de Álvaro Lapa, sobretudo as relacionadas com a figura de Milarepa, o santo tibetano. E nas proximidades podem ainda ver-se trabalhos de Paul Thek e de Dimitrije Mangelos.O piso inferior do MACS é sobretudo dedicado a artistas portugueses. Numa das salas foram instalados objectos, pinturas e esculturas de Ana Vieira, Ree Morton, Öyvind Fahlström, Luís Gordilho, Lourdes Castro, Lygia Pape, Pires Vieira, René Bertholo, António Areal e Joaquim Bravo. Uma outra divisão é inteiramente dedicada a Eduardo Batarda. Nos restantes espaços encontram-se obras de José Guimarães, Manuel Casimiro, José Escada, Ruy Leitão, Sá Nogueira, Noronha da Costa, Paula Rego, Joaquim Rodrigo, Manuel Baptista, Fernando Lanhas, Nikias Skapinakis, Júlio Pomar, António Charrua e António Sena. No exterior pode ver-se escultura de Zulmiro de Carvalho.Na biblioteca do MACS estão instaladas trabalhos - muitos dos quais livros de artista - de James Lee Byars, Ana Hatherly, Gordon Matta-Clark, Ed Ruscha, Hans-Peter Feldmann, Salette Tavares, Maria Nordmann, Ilya Kabakov e Lawrence Weiner. Para o fim, os responsáveis pela "Circa 1968" reservaram uma sala para uma importante obra de Boltanski ("L'Appartement de la Rue Vaugirard", que é constituída por um filme, uma colagem e manuscritos) e outra onde serão exibidos os vídeos da norte-americana Joan Joanas.A inesgotável aventura continua agora no auditório, na casa (ver caixa), na garagem, locais onde são mostrados mais vídeos, filmes, pinturas, esculturas e instalações que ajudam a completar esta(s) história(s) da arte desenhada pelos directores artísticos de Serralves. Uma história que não pretende ser um manual exaustivo sobre a época abordada. As lacunas na "Circa 1968" são, por um lado, resultado de uma declarada opção - como se pode verificar pela ausência de artistas da linha dura da arte conceptual: Art & Language, Douglas Huebler, On Kawara, Joseph Kosuth, Daniel Buren, Victor Burgin - e, por outro, da impossibilidade económica de adquirir outras peças disponíveis no mercado. Uma colecção é sempre um "work in progress", com limites, que, por o serem, são também um desafio. No futuro, ela pode ser completada com outros trabalhos essenciais para a compreensão de uma época em que a arte saiu dos museus, das galerias, para conviver com o mundo. Assinale-se, contudo, que o espólio reunido por Todolí e Fernandes é desde já um notável contributo para superar o desconhecimento existente no nosso país relativamente aos sobressaltos que atravessaram a arte contemporânea nos últimos 30 anos.

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