Um panorama essencial

Tudo leva a crer que os leitores de poesia no Brasil irão descobrir um conjunto de nomes que em muitos casos serão verdadeiras revelações. Com inegável bom senso, Alexei Bueno e Alberto Costa e Silva consideraram que não fazia sentido, no estado de desinformação actual, propor uma antologia com critérios muito específicos e defesa renhida de certos autores.

1. Tivemos recentemente algumas antologias poéticas fundamentais: a de Jorge de Sena (seguida de uma outra de Ramos Rosa), com notas exemplares de concisão e lucidez, apresentando autores que por vezes quase ninguém conhecia; a dos "novíssimos", extensíssima, de Mello e Castro; a de Herberto Helder, com diversas surpresas e provocações, e um critério ferozmente subjectivo; e depois (podemos ainda mencionar a de Luís Miguel Nava, elaborada no âmbito da Europália, há cerca de dez anos) deixaram de aparecer. No entanto, a poesia persiste, obstinadamente, felizmente, numa qualidade gratificante que merece leitura, atenção e selecção.No caso do Brasil, a mais importante antologia saiu em 1944, organizada por Cecília Meireles, e intitulava-se "Poetas Novos de Portugal". Depois disso surgiram em 53 "Doze jovens poetas portugueses" de Alfredo Margarido, "Poetas modernos portugueses" de João Alves das Neves em 67, e a "Antologia da poesia portuguesa" de Carlos Nejar, em 1982, com distribuição muito deficiente.Daí que a notícia de duas antologias no Brasil não possa deixar de ser saudada com entusiamo. Por um lado, porque em terras brasileiras, depois de Pessoa e Florbela, o conhecimento amplo dos nossos poetas não é uma evidência. Donde, esta lacuna deveria ser preenchida, em primeiro lugar com antologias globais que antecipassem a publicação de antologias pessoais. Por outro lado, porque as próprias antologias brasileiras virão contribuir junto dos portugueses para uma visão antológica que a nossa edição não tem propiciado nos últimos tempos, visão tanto mais estimulante quanto parte de olhares simultaneamente cúmplices e estranhos, capazes de nos proporem leituras contrastadas da evolução portuguesa.Uma já saiu. É de dois poetas, Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno, chama-se "Antologia da poesia portuguesa contemporânea" e foi uma iniciativa arriscada, e bem realizada, da Lacerda Editores do Rio de Janeiro. A segunda antologia prevista deverá ter dois volumes, um dedicado aos autores revelados antes do 25 de Abril, outro ocupando-se do período complementar, e é da responsabilidade de Jorge Fernandes da Silveira, um dos melhores conhecedores da moderna poesia portuguesa, professor de méritos reconhecidos e ensaísta brilhante (este projecto pertence à Record). Mas lembremos ainda que deverá aparecer uma antologia de Alexandre O'Neil, organizada por António Torres, e um volume de poesia de Luís Filipe Castro Mendes, com introdução de Pedro Lyra. 2. Diga-se de passagem, para evitar equívocos desnecessários, que a indicação "um panorama", que aparece como subtítulo, esclarece os propósitos. Com inegável bom senso, Alexei Bueno e Alberto Costa e Silva consideraram que não fazia sentido, no estado de desinformação actual, propor uma antologia com critérios muito específicos e defesa renhida de certos autores. Donde, trata-se mesmo de um panorama muito englobante onde cerca de setenta autores representam quase tudo o que de importante e significativo apareceu desde a selecção de Cecília Meireles (que foi considerada como a linha de fronteira). Tudo leva a crer que os leitores de poesia no Brasil irão descobrir um conjunto de nomes que em muitos casos serão verdadeiras revelações. Isto porque muitas vezes, quando falamos na jovem poesia portuguesa, nos respondem com Carlos de Oliveira ou Eugénio de Andrade, o que, por muita que seja a eterna juventude destes poetas, poderá surgir como um pouco exagerado...Evidentemente, há ausências. Até porque ausências há sempre, faz parte das regras de jogo. E nem vou dizer que há algumas presenças que me parecem discutíveis - seria o modo fácil de numa frase arranjar três ou quatro inimigos desnecessários. Mas ausências óbvias são as de Joaquim Manuel Magalhães (por motivos sobejamente conhecidos), de José Agostinho Baptista e de Ana Luísa Amaral. Poderia acrescentar ainda o nome de Fernando Guerreiro, mas confesso que eu próprio não consigo encontrar os livros dele nas livrarias de Lisboa - donde, a ausência está justificada.O que há de mais interessante de um ponto de vista crítico neste volume (cuja qualidade gráfica merece ser sublinhada) são as considerações que, num descontraído diálogo, os dois antologiadores tecem sobre a poesia portuguesa - e sobretudo sobre o modo como eles paradigmaticamente a descobriram. É claro que em certos casos há ajustes de contas internos que se fazem a pretexto dos portugueses. È um pouco o caso do modo como Alexei Bueno se pretende vingar de todo o peso da tradição positivista, parnasiana, naturalista no Brasil, que se terá prolongado até aos anos 30, e que deu um Modernismo que visava fundamentalmente "reinventar o Brasil" (aqui as palavras são de Costa e Silva) enquanto o Modernismo português pretenderia "recolocar Portugal na Europa" (embora, sublinhe-se, este terá sido o grande momento literário em que Portugal esteve directamente na Europa na hora certa). Não deixa de ser curioso que Alberto Costa e Silva observe que "a repercussão dos poetas da 'Presença' foi, na realidade, mínima", uma vez que "fizemos de Pessoa nosso contemporâneo e o poeta moderno por definição". Donde, alguns brasileiros (suponho que nem todos, embora Torga seja mais conhecido como prosador) saltaram por cima de uma geração com as obras de Casais Monteiro, Torga ou Nemésio. Depois da guerra, as coisas pioram claramente. Se em Portugal existe um Neo-realismo (que não chega a merecer referência aos nossos comentadores), o nosso Surrealismo tardio não tem qualquer equivalência no Brasil e a próxima etapa das vanguardas brasileiras terá o nome, nos anos 50, de Concretismo. Apesar de alguns ecos e efeitos do lado português (que Costa e Silva enfatiza e que Bueno desvaloriza), é verdade que o Concretismo brasileiro nunca teve entre nós o peso que assumiu no Brasil, o que suscita uma explicação de Bueno: o Concretismo brasileiro "transformou-se no novo avatar do Parnasianismo, com o mesmíssimo culto da objectividade e com o mesmíssimo efeito esterilizante". Afirmação certamente polémica.3. Num balanço pouco optimista, Alexei Bueno pode dizer-nos que "do mesmo modo que, em Portugal, o último poeta brasileiro vastamente conhecido é João Cabral de Melo Neto, no Brasil talvez o último nome , por data de nascimento, da poesia portuguesa amplamente lido e divulgado seja o de Florbela Espanca". Mas depois de ter elaborado esta antologia Bueno não deixa de mostrar o seu entusiasmo: "o que me parece fundamental para nós, no Brasil, nesta antologia da poesia portuguesa, é o seu pluralismo, a sua grande variedade, o seu não-ortodoxismo. Temos aqui desde a espantosa liberdade de imaginação e visão directa do quotidiano - também de provável origem em Cesário - de um Alexandre O'Neil ou de um Mário Cesariny, até o admirável registo lírico de situações históricas e sociológicas que encontramos em Manuel Alegre."Isto tudo, claro, é importante que se diga numa altura em que, segundo os antologiadores, o livro de autor português praticamente desapareceu das livrarias brasileiras. Esperemos que iniciativas como esta contribuam para inverter a situação.

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