Takeshi Kitano, o garoto

Cannes viu o último filme de Takeshi Kitano. "O Verão de Kikujiro" fez ecoar vários "bravo" pelo Palácio dos Festivais e, quando Kitano entrou na sala de conferências de imprensa, os jornalistas foram avisados de que não era permitido pedir autógrafos. Este é um filme sobre a infância, onde o cineasta aprendeu a estar longe dos outros.

É impressionante a ascensão de Takeshi Kitano. Em 1993, Cannes viu, na secção Un Certain Regard, "Sonatine", um choque tremendo com um universo simultaneamente brutal e cândido, num filme em que um grupo de "yakusa" brincava aos jogos de feira numa praia. Só três anos depois é que Cannes foi visitada pelo próprio cineasta/actor, que chegou para promover "Kids Return", e já eram evidentes nessa altura os sinais do culto e o atordoamento do próprio perante o fenómeno. Mas foi "Fogo-de-Artifício", Leão de Ouro no Festival de Veneza, em 1997, que lançou Takeshi Kitano para todos. E para o próprio Japão, onde ele era, e é, uma grande estrela da televisão, mas onde os seus fãs não se atreviam a entrar numa sala de cinema para ver os filmes. Agora, Takeshi Kitano confessa que está "assustado". Os japoneses integraram a caução europeia e precipitam-se para as salas. Ontem, Cannes viu o último filme de Takeshi Kitano, "O Verão de Kikujiro"; na véspera, a Arte emitiu um programa sobre o cineasta; a França está a repor comercialmente as obras anteriores a "Sonatina"; "O Verão de Kikujiro" fez ecoar vários "bravo" pelo Palácio dos Festivais. Quando Takeshi Kitano entrou na sala de conferências de imprensa, os jornalistas foram avisados de que não era permitido pedir autógrafos. Receou-se que a fama tivesse mudado, definitivamente, aquela figura que se torcia de incómodo em Veneza quando recebia os aplausos dos jornalistas. Takeshi está mais imune, os esgares de embaraço mais controlados. Mas, afinal, assinou os autógrafos, e tudo pode ser explicado, também, por aquilo que ele disse em relação à distância com que, nos seus filmes, as personagens se olham - e ele, cineasta, as olha."Foi isso que aprendi na infância, a estar longe dos outros. É isso que está nos meus filmes, uma certa reserva e pudor. Ninguém mostra aos outros os seus sentimentos, e isso é muito japonês". Que continue assim, com essa impassibilidade a desferir golpes letais nas expectativas dos espectadores. É o caso de "O Verão de Kikujiro". Depois do melodrama, em "Fogo-de-Artifício", que cortou com os filmes de gangsters anteriores, agora é o burlesco de "vaudeville" que Takeshi importou dos seus próprios "shows" televisivos. O cineasta é hoje um nome popular, chegou a algo de universal, apesar de alguma imprensa - sobretudo anglo-saxónica - não ter apreciado por aí além esta incursão na comédia; outros, apressaram-se a descobrir influências de Buster Keaton, W. C. Fields ou até dos irmãos Marx, mas perante esses nomes os olhos de Takeshi não pestanejaram. "Não estou seguro de me posicionar num ponto qualquer onde se cruzam influências. Sou profundamente japonês e para este filme incorporei a minha prática de comediante, o meu registo pessoal de cómico no Japão"."O Verão de Kikujiro" não é só uma comédia, é uma comédia infantil. As férias grandes começaram, e uma criança, Masao, que vive com a avó, não tem com quem brincar. Kikujiro (Takeshi Kitano) é então voluntário à força para acompanhar Masao numa viagem a outra cidade para a criança visitar a mãe que nunca conheceu. Em Kikujiro, um irresponsável e um farçante sem escrúpulos, não abundam a paciência ou uma grande capacidade de afecto para as crianças. Kikujiro é também o nome do pai de Takeshi Kitano, e a memória que o filho tem dele dá a medida da personagem do filme. "Nunca experimentei com ele uma relação pai/filho. Pouco o via porque ele chegava a casa sempre bêbado, começavam as cenas de violência e eu fugia para a minha cama". Takeshi também não sabia como é que um realizador dirige uma criança. "Não a dirigi, para não me chatear com aquilo que eu lhe pedisse e ela não conseguisse fazer. Tratei-a como um animal, não lhe dei ordens, ela que fizesse o que quisesse". Cada um deles - a personagem de Kikujiro e o cineasta Kitano - embarcaram então numa viagem de aprendizagem, no filme e durante a rodagem, e o que se pode dizer é que se o burlesco irrompia nas obras anteriores como uma forma de destruir uma personagem, de a fazer desintegrar-se, em "O Verão de Kikujiro" ele é profundamente regenerador. Kukujiro constrói-se, e não é por acaso que é o nome dele que está no título do filme e não o de Masao, que é, afinal, a personagem principal. Por isso, sendo uma comédia, "O Verão de Kikujiro" esconde um melodrama que o olhar ocidental tem identificado com "O Garoto", de Chaplin.Takeshi continua a perseguir a sua utopia de um filme perfeito ser uma sucessão de imagens fixas, como "slides", com música. "Com o tempo, acrescentou-se ao cinema o movimento, os diálogos, a cor. Mas acho que se fez de mais e é preciso iniciar o processo inverso, regressar á origem e retirar todos os adornos que se foram colocando". Para este "picture book", que é a forma como se estrutura "O Verão de Kikujiro", contribuem os desenhos do próprio Takeshi (pintor e cartoonista para além de escritor, poeta, comediante e realizador) que também são quadros vivos de uma fantasia surrealizante - há sonhos, um "homem polvo" e todo o bestiário de um imaginário infantil ou "naïf". Mas o burlesco, sempre elíptico e coreografado pela câmara, está menos crispado e as pulsões violentas de Takeshi Kitano estão escondidas (não estão invisíveis) e propositadamente abafadas pela música. Este filme é uma serena experiência de um cineasta/actor, que sempre se auto-destruiu nos filmes e agora testa a possibilidade de regeneração."Penso que o que torna mais universal este humor é o facto de, por exemplo neste filme, eu não identificar uma época, que aqui é qualquer coisa de indefinível, algures entre a actualidade e a altura em que eu fui jovem. Para além disso, compreendo que os ocidentais considerem muito vulgar o humor das 'sitcoms' japonesas. Eu também considero, por isso quero ser mais refinado. O que não impede que mesmo no Japão me continuem a achar vulgar".Para já, Takeshi Kitano confirmou que desenvolve neste momento um projecto americano, num filme falado em inglês, que contará a história de um japonês que vai pela primeira vez aos Estados Unidos. Mas que não se pense que há algum final de ciclo, avisa Kitano, porque a seguir a "O Verão de Kikujiro" virá um outro filme de gangsters "e depois dele provavelmente um filme que não será de gangsters. Espero continuar a trair as expectativas das pessoas".Há algo que Takeshi Kitano não perdeu: o embaraço de ser visto como autor. "O Verão de Kikujiro" é desde ontem mais um favorito para a Palma de Ouro de Cannes e acredita-se quando o realizador diz: "Para mim, já é uma enorme honra estar aqui. Não penso em prémios, porque não considero que estou ao nível ou no patamar em que estão estes grandes nomes do cinema".

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