Os segredos de Blimunda

A inefável Blimunda, o estropiado Baltazar, o sábio Bartolomeu, três personagens transgressoras passadas para teatro daquele que é considerado o grande livro de Saramago, "Memorial do Convento". Um espectáculo que segue à risca o espírito saramaguês: os diálogos, a conflitualidade, a humanidade, a filosofia e a crueldade.

Blimunda dorme com Baltazar e, na manhã seguinte, após comer o pão, marca-lhe o peito com o sangue virginal e diz: "Nunca te olharei por dentro". "Memorial do Convento", agora em peça de teatro, conserva a sua grande densidade de conflitos, com três personagens em permanente transgressão, uma mulher "feiticeira", um ex-soldado "maneta" e um padre "voador". Trata-se de uma peça sobre a construção de uma grande obra de fachada, o Convento de Mafra, e de uma invenção louca, a Passarola. Uma peça que fala do sacrifício do homem e da sua própria construção enquanto indivíduo, contra todas as Inquisições e a favor do amor em pacto de sangue. Esta adaptação do "Memorial do Convento" estreia-se hoje no Teatro da Trindade, em Lisboa, às 21h30, pela Companhia de Teatro de Almada, com uma encenação de Joaquim Benite.Miguel Real e Filomena Oliveira, ligados à companhia de Teatro de Sintra, uma das co-produtoras do espectáculo, adaptaram o romance de Saramago. O autor gostou e autorizou. Para a encenação foi convidado Joaquim Benite e a Companhia de Teatro de Almada. Uma terceira entidade surgiu, depois, neste longo percurso, o Inatel, que assina a co-produção, cedendo o espaço do Teatro da Trindade. Uma produção que custou mais de 50 mil contos."A adaptação surpreendeu-me, conseguiu transpor para o teatro o essencial do romance, seguindo o estilo de Saramago e retirando do livro os próprios diálogos. O saramaguês está lá todo e a estrutura dramatúrgica, o cenário, a encenação, a música, desenvolvem-se numa evolução contínua, como no livro: a lenta construção do convento e da passarola, a construção das próprias personagens que se vão mostrando ao espectador na sua conflitualidade e na sua marginalidade. É um espectáculo, na sua totalidade, fiel ao autor, em que até os actores são os construtores civis", disse Joaquim Benite ao PÚBLICO.Tal como no livro, a peça mostra as três personagens principais da obra, Blimunda (Teresa Gafeira), Baltazar Sete Sóis (Jorge Sequerra) e Bartolomeu Lourenço Gusmão (Augusto Portela) na sua própria conflitualidade, sobrevivendo dentro das digressões narrativas do autor. Os pontos de vista de cada um são sempre diferentes e o sujeito da narração não é sempre o mesmo. Problemas complexos que tanto adaptadores como encenador conseguiram resolver.O que fazer com o narrador? A esta pergunta responde Filomena Oliveira: "Essa foi a nossa primeira preocupação, o que fazer com a voz do autor que tem um grande peso na narrativa e não utiliza uma linguagem dramática. Retirámos o essencial do narrador e integrámo-lo dentro dos diálogos entre as personagens".A personagem de Blimunda foi a escolhida enquanto elemento fortíssimo e só depois Baltazar e Bartolomeu. Os adaptadores do texto, para quem este trabalho foi "um acto de amor estético", retiveram a ideia de que "depois de um morto e de outro, é ela que resta, enquanto personagem sagrada", ideia que passa igualmente na obra de Saramago, ao lado de outra que Filomena Oliveira quis salientar: "O melhor segredo do universo são as vontades humanas". Uma Blimunda sagrada que atravessa o romance e que funciona como elo de ligação entre o sonho e a realidade - o desejo de construir o convento e a passarola e a sua efectiva construção - é o papel que foi destinado à actriz Teresa Gafeira. Blimunda começa sozinha com a punição da mãe e acaba sozinha com a punição de Baltazar, ambos em autos-de-fé."Eu não consigo fazer uma síntese da personagem de Blimunda. Ela é uma mulher da terra e ao mesmo tempo etérea, está lá e depois não está, é uma personagem fugidia. Ao mesmo tempo, tem que ser uma personagem normalíssima, com um amor normal, sem romantismos, nem artifícios, embora sustentada num pacto de sangue indestrutível. Ela tem medo de arrancar as vontades das pessoas, mas isso fascina-a. Tem uma sede de saber. A realidade atinge-a, mas a sua crença no divino está acima disso tudo. Ela sabe coisas que mais ninguém sabe", disse Teresa Gafeira ao PÚBLICO.Para Joaquim Benite, este espectáculo tem outros ingredientes interessantes: "Para lá da metáfora da Inquisição, é o quotidiano de hoje que está ali presente. São os escravos da construção civil, os operários da ponte Vasco da Gama. O grande trunfo desta obra é que, além de bastante teatral, ela é intemporal. "Diz o encenador: "O teatro tem que ser plástico e é essa plasticidade que procuramos e que, penso, existe também neste espectáculo. Para além disso, tentamos encontrar nos textos uma linguagem que se adapte à teatralidade, a essência do texto no seu campo semântico e não a oralidade porque isso simplifica as coisas. A mistura da linguagem erudita e popular em Saramago é excepcional, tal como acontece nos textos de Shakespeare, Molière ou Goldoni. Muito teatral, muito visual, com muito movimento, sem nunca perder nem o lado mágico, nem o lado obscurantista". Benite defende um teatro cuja função é a de pôr as pessoas a pensar: "Nos anos 60 era a revolta, hoje acho que é a reflexão. Um texto para discussão de ideias é mais importante do que as apologias. Considero positivo as gerações mais novas estarem mais curiosas e a interessarem-se pelo teatro". E acrescenta que escrever para teatro é terrível porque continua a ser um trabalho desprezado: "Há uma subestimação da literatura dramatúrgica. Já no tempo da Inquisição o teatro era condenado".de José Saramagopela Companhia de Teatro de AlmadaEncenação de Joaquim Benite; adaptação de Miguel Real e Filomena Oliveira; cenografia de José Manuel Castanheira; Figurinos de Filipe Faísca e música de Paulo Brandão.Com Teresa Gafeira, Jorge Sequerra, Augusto Portela e Jean-Pierre Fouque no principais papéis.LISBOA, Teatro da Trindade, de 20 de Maio a 27 de Junho; 3ª a sáb. às 21h30, dom., às 16h.

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