O actor que escrevia romances

"Sir" Dirk Bogarde, para os ingleses, um senhor na arte da interpretação, para os cinéfilos de todo o mundo, morreu anteontem. Os seus papéis de criado perverso no filme de Losey e de compositor que morre de paixão e solidão no filme de Visconti fazem parte da mais forte memória do cinema. Mas Bogarde também expressou a sua magia em livros.

Os cinéfilos retêm a sua recriação de um empregado de quarto perverso e maquiavélico na casa de um aristocrata londrino, em "O Criado", de Joseph Losey; mas também a de um compositor solitário e incapacitado de criar perante a perturbante visão da beleza dum adolescente nas praias do Lido, em "A Morte em Veneza", de Luchino Visconti. Estes dois filmes dão bem conta da diversidade de registos de que era capaz Dirk Bogarde, o actor que anteontem morreu na sua Londres natal, aos 78 anos de idade.Desapareceu, assim, "Sir" Dirk Bogarde, uma figura que, para além do cinema, associou também o seu nome à literatura, a que viria a dedicar-se com grande fulgor criativo nas últimas duas décadas de vida. Foi também um acérrimo defensor de uma das mais polémicas causas "humanitárias" dos nossos tempos: a eutanásia. "Não fomos nós que decidimos nascer, mas devemos ser nós a decidir como viver e quando pôr fim às nossas vidas", disse Dirk Bogarde, que em 1992 se tornou vice-presidente da Voluntary Euthanasia Society, de Londres.É, no entanto, a história do cinema que vai reter para a posteridade o nome deste inglês de porte perturbantemente distinto. Dirk Bogarde resultou da simplificação dum longo nome de baptismo, Derek Niven van der Bogaerdé, que encerrava origens holandesas, por parte do pai, e hispano-escocesas, pela mãe. Do pai, editor fotográfico do jornal "The Times", Dirk recebeu lições de fotografia, ofício que viria a praticar na 2ª Guerra Mundial - coube-lhe registar o desembarque do general Montgomery em França. Antes da guerra, e depois de estudos em Glasgow e Londres, Bogarde já experimentara o teatro e o cinema. No final do conflito, regressou aos palcos e ao "plateau" e, no início da década de 50, começou a inscrever com regularidade o seu nome nos genéricos do cinema britânico, trabalhando com cineastas como Basil Dearden ("The Blue Lamp"), Terence Fisher ("So Long at the Fair"), ou Anthony Asquith ("The Woman in Question"). Mas é com Ralph Thomas que encontra o seu primeiro grande registo mediático na recriação da figura de um médico (Doctor Sparrow), que rendeu várias longas-metragens e lhe outorgou o epíteto de "ídolo das matinés"!...Percebia-se, no entanto, que Dirk Bogarde esperava ainda pelo "seu" realizador. E ele surgiu, em 1954: Joseph Losey com "The Sleeping Tiger", o primeiro de uma série de cinco filmes conjuntos, dos quais "The Servant" (1963) se tornou num clássico do cinema. Refira-se, no entanto, que em 1961 Bogarde tinha já feito a "tour de force" na sua carreira com "The Victim", de Basil Dearden, em que interpreta a figura de um homossexual vítima de chantagem.A partir de "O Criado", a carreira do actor é bem conhecida. Com Visconti, e antes de "Morte em Veneza", fez "Os Malditos", um episódio da ascenção do nazismo, tema a que Bogarde voltaria a dar corpo em "O Porteiro da Noite" (1973), de Liliana Cavani. "Providence" (1976), de Alain Resnais; e "Despair" (1978), de Fassbinder, são duas outras fitas de referência na fase final da sua carreira, que praticamente abandonou no início dos anos 80 - a excepção foi "Daddy Nostalgia" (1990), de Bertrand Tavernier.Nas últimas décadas, entre uma cidade do sul de França e Londres, Bogarde dedicou-se aos livros e os gatos. Sobre a sua carreira literária, os críticos falam de uma escrita "mágica", pontuada por "uma memória fotográfica". Foi esta memória que o levou a transportar a experiência da sua vida para vários livros e novelas, como "A Postilion Struck by Lightening" ou "A Gentle Occupation".

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