Uma sentença que "cheira mal"

A notícia da condenação do ex-vice-primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, ontem sentenciado a seis anos de prisão por corrupção, desencadeou uma onda de protestos dos seus apoiantes e a indignação de vários países. Para o arguido, que desde que o processo começou se diz vítima de uma conspiração política, o veredicto "cheira muito mal". Os protestos da população contra o Governo de Kuala Lumpur saíram para a rua e para o ciberespaço."Isto é uma desgraça absoluta", disse Anwar ao Supremo Tribunal depois de ouvir a sentença do juiz, adiantando que o primeiro-ministro Mahathir Mohamad conseguiu subverter o sistema judicial e policial numa jogada política. E foi também por essas razões que a capital estava ontem sob um cenário de hostilidades. Rapidamente os apoiantes de Anwar, que era também ministro das Finanças, entraram em confronto com as forças policiais no primeiro protesto público contra o Governo em cinco meses. Gritando "slogans" contra o regime e fazendo fogueiras em vários locais da capital, os manifestantes atiraram pedras e garrafas de plástico às forças policiais, que responderam com gás lacrimogéneo e canhões de água com químicos irritantes para os olhos e uma tinta verde-amarelada indelével. Algumas pessoas partiram os vidros do carro da cadeia de televisão TV3, que os apoiantes de Anwar acusam de ter seguido uma linha editorial favorável ao Governo. Mas os estragos não ficaram por aqui. Os manifestantes quebraram os vidros do edifício do tribunal e de uma esquadra da polícia nas suas imediações, ferindo uma mulher. Segundo testemunhas ouvidas pela Reuters, também a polícia de choque deixou alguns manifestantes a sangrar, depois de os atingir com bastonadas.A revolta chegou também à Internet, onde alguns "newsgroups" lançaram palavras de ordem contra o primeiro-ministro. "O veredicto deste julgamento foi o último prego para o caixão de Mahathir. O seu estatuto como um dos grandes primeiros-ministros da Malásia está para sempre queimado". Outro utilizador escrevia: "É mesmo uma pena. Depois de um período bem sucedido de 18 anos, Mahathir vai para o túmulo como um dos homens mais odiados da Malásia".Numa sentença que ocupou 394 páginas, o juiz Augustine Paul explicou que Anwar - considerado culpado de quatro acusações - abusou do poder que lhe foi atribuído e merecia uma punição pesada, mesmo que não tenha havido envolvimento de dinheiro."As acusações fazem parte de uma conspiração política para me destruir e assegurar que Mahathir Mohamad continuará no poder a qualquer custo, mesmo que isso signifique sacrificar o pouco que resta da integridade do sistema judicial", defendeu Anwar.As divergências entre Anwar e o primeiro-ministro começaram em Maio do ano passado, quando o vice-primeiro-ministro (cargo ocupado em 1993, dois anos depois de adquirir a pasta das Finanças) começou a exigir reformas políticas. Aquele que era até então o mais provável sucessor de Mahathir Mohamad tornou-se no seu inimigo número um. Seguiram-se então uma série demissões, quer de jornalistas próximos de Anwar, quer de políticos que partilhavam os seus pontos de vista. Até que em Setembro, e depois de vários diferendos sobre a política económica, o chefe do Executivo decidiu demitir Anwar. O ministro sai, mas não sem chamar "paranóico" a Mahathir, a quem também acusa de resistir a reformas urgentes para o país. Depois de dois homens terem afirmado que se deixaram sodomizar por Anwar (a sodomia é punida pela lei malaia), o ex-ministro alegou que se estava a formar uma campanha contra ele, dirigida pelo chefe do Governo. Foi esse o argumento que foi usado durante toda a sua defesa. No mesmo mês, Anwar foi detido e à acusação de sodomia juntaram-se quatro acusações de corrupção. Anwar afirmou ter sido espancado pela polícia enquanto esteve detido e mais manifestações contra o Governo voltaram às ruas de Kuala Lumpur. O julgamento começou em Novembro, para acabar por ser o mais longo da história do país. No princípio deste mês, a mulher do ex-ministro, Wan Azizah Ismail, lançou um novo partido político para concorrer às próximas eleições. Wan apela aos grupos da oposição que se unam para derrotar o primeiro-ministro. Para os analistas, Anwar foi agora afastado da política, mas continuará a ser um símbolo das reformas. Para já, promete recorrer da sentença, mas ainda terá de enfrentar uma acusação de corrupção e cinco de sodomia.Ontem foi um dia negro para a Malásia. Pelo menos é assim que vários países, grupos de direitos humanos e analistas vêem a sentença. A Amnistia Internacional afirmou que a sua detenção foi motivada politicamente e os EUA apontaram várias lacunas ao processo. Um antigo embaixador norte-americano em Kuala Lumpur afirmou à Reuters que agora Anwar será "o mais famoso preso político". "A decisão foi tomada para o apanhar e ele foi apanhado. É um ultraje", disse John Mallot.Também o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Robin Cook, apelou a um recurso "rápido e honesto" da sentença. "Concluímos que certos aspectos são uma fonte real de preocupações, em particular a ligação entre os poderes executivo e judicial". Também a Austrália, Filipinas e Nova Zelândia expressaram as suas "preocupações internacionais".

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