A mulher que foi à guerra

Fotografias, cartas, documentos, livros, verbetes. Por detrás deles um universo inteiro. Uma vida rápida e fascinante. Solar e lunar. Uma peça encenada com invenção, poesia e fulgor. E dádiva. Natália Correia morreu há seis anos. Agora, podemos ver uma parte ínfima - mas quanto imensa - do seu espólio. Na Biblioteca Nacional, em Lisboa.

"Os meus livros não podem ser separados da minha vida"GoetheÉ menino ou menina? É um anjo? Uma ninfa? É a pequenita Natália, com quatro apenas, mas de cabelo curtinho, à rapaz, com estreita franginha. Sentada em cima de almofada, é um belíssimo photomaton sépia tirado num estúdio em Ponta Delgada, S. Miguel, Fajã de Baixo, onde Natália de Oliveira Correia nasceu a 13 de Setembro de 1923.É assim que abre a exposição Espólio de Natália Correia, na Biblioteca Nacional (BN) em Lisboa, que evoca hoje, pelas 18h, a vida e a obra da escritora numa "tertúlia", como a poeta gostaria, animada pela sua amiga Helena Roseta, Carlos Reis, director da BN, e Silvina Pereira, actriz, que dirá alguns poemas da autora de "Mátria". Mais do que uma homenagem - uma palavra que, por certo, não agradaria à ficcionista - à ideia de fazer coincidir a iniciativa com o Dia Internacional da Mulher não é estranha a multifacetada, heterodoxa, interventiva e rebelde acção que Natália Correia pôs em tudo aquilo em que se envolveu. Desde que chegou à BN em Julho de 1998, esta é a primeira oportunidade de conhecer de perto uma pequena parte do fabuloso espólio. Ainda não totalmente inventariado - "é um trabalho para bastante tempo" reconhece Carlos Reis - esta ínfima parte do universo da escritora é particularmente comovedora.Foi muito cedo que, com a mãe e a irmã, cruzou o Atlântico e se fixou em Lisboa. Aluna do Liceu Filipa de Lencastre, é expulsa por se recusar a fazer o caderno diário: ninguém lhe conseguiu mostrar nem a utilidade nem a razão de ser. Acaba os estudos secundários num colégio particular. Tentam, familiares e amigos, levá-la a seguir Direito. Debalde. Natália opta pela carreira de jornalista no Rádio Clube Português.1939. Tem 16 anos. Escreve no verso de uma fotografia: "Como prova de 'algo' que já não precisa de ser provado." 10 anos depois está casada, pela segunda vez, com William Creighton Hylon. Três anos antes dera à estampa, o seu primeiro livro, "Grandes Aventuras de um Pequeno Herói", nas Edições Astra, do Porto. Estamos em 1947. Natália está em Nova Iorque e não escapa à estupidez da censura quando escreve, para o jornal "Sol", sobre a América. A letra é de mulher, redonda. "Com os diabos! Não haverá mais nada para dizer acerca da América além de que é um país livre", anota no pautado caderno diário, este já com razão de ser.A fotografia, tipo passe, é pequena mas a beleza de Natália não precisa de ser comprovada. Tem os lábios retocados, cabelos apanhados para trás: é de fazer cortar a respiração de qualquer mortal... Entre os documentos expostos na segunda vitrine, está também a sua tradução de "Huis Clos" de Sartre, que seria representado na sua casa, em 1952, a seu convite e de Alfredo Laje Machado. O convite é claro: o traje de noite é obrigatório.Começa a ter uma vida social. Deste período há uma foto deliciosa. De cigarro na boca (não, ainda não tinha chegado o tempo da celebérrima boquilha), conversa com Urbano Tavares Rodrigues e Baptista-Bastos, num encontro com o romancista norte-americano John dos Passos. A boémia surge rápida. Em 1969, aparece Dórdio Guimarães. É talvez o primeiro encontro, quem saberá? Ele escreverá um dia: "O maior orgulho da minha vida assenta em que no dia que conheci pessoalmente a Natália há muito que estava apaixonado por ela, uma vez que desde os meus catorze anos de idade já a amava em silêncio e à distância."Olhar felino, altiva e mais bela do que nunca, Natália aparece noutra foto ao lado de Mário Cesariny. Pouco tempo depois, edita a "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica". Quando chega à Biblioteca Nacional é catalogada - "Obra proibida" - a ficha está lá. Uma ironia do destino.Agora a caligrafia é cada vez mais rápida e densa. Escreve, risca, volta a escrever. Fica fula quando lhe censuram a peça o "O Encoberto". Arrasa Marcello Caetano numa carta. O fim é à Natália: "Subscrevo-me, com os protestos da mais alta consideração." A actividade cívica aumenta. Já com o 25 de Abril quase à porta, pensa criar um jornal, significativamente intitulado "O Motim", ao mesmo tempo que a censura proíbe, mais uma vez, "A Donzela vai à Guerra". Natália, a mulher como a poeta, há muito que a tinha abraçado.Os anos quentes dos Cravos são ilustrados com algumas preciosidades: há cartões, como o assinado por José Gomes Ferreira, da sócia nº 35 da Associação Portuguesa de Escritores ou como o do Botequim, esse espaço de tertúlia único de Lisboa: "Lisboa, Bilhete de Identidade, Do Sócio Exmo Senhor Natália Correia, nº 1". Faz poemas-discursos-trabalhos de investigação em folhas A4 com as três setas do PSD, mas é numa em branco que redige um discurso para o 10 de Junho no Brasil do então primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão. Depois de um conselho nacional do partido, dança a valsa com Sá Carneiro, a convite do "Francisco". Está tão próxima de Eanes, no PRD, como apoia Soares à Presidência da República. Gesticula, com os dedos apontados para o céu, numa conferência - acreditem: é verdade - sobre a Condição Masculina. Lá está a fotografia como testemunha.A caligrafia é cada vez mais sincopada, instável. Acelerada. Em 1991, discursa na Assembleia da República sobre a sua alma gémea: Antero, o bardo, que tanto admirava. Um ano depois, quando prepara a sua antologia de poesia para o Círculo de Leitores, "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias" - um título que é toda uma vida - desconcerta: "Perturba-me escrever sobre a minha poesia como me solicitam." Uma poesia, uma voz, única. Inconfundível. Que se apagou a 16 de Março de 1993. A morte nunca foi tão absurda.

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