"A vida é terrível, mas divertida"

Inteligente, inventiva e luminosa, uma escritora de culto para os leitores britânicos. Com 27 romances editados e importantes ensaios filosóficos, a irlandesa Iris Murdoch é uma das autoras mais marcantes da literatura do pós-guerra na Grã-Bretanha. Morreu ontem vítima da doença de Alzheimer. O seu último livro publicado em Portugal tem por título "Ser Bom Não Basta".

A romancista irlandesa Iris Murdoch, uma das escritoras preferidas dos leitores britânicos, morreu ontem com 79 anos numa casa de saúde de Oxford, onde havia sido internada há três semanas. A escritora sofria da doença de Alzheimer desde 1994 e deixou escrito que não desejava nem funeral, nem homenagens.A autora de "O Sino", "Rosa Bravia" ou "Ser Bom Não Basta", todos editados pela Europa-América, tinha também outra paixão: a filosofia. Foi aluna de Wittgenstein e dedicou em 1953 um ensaio a Jean Paul Sartre. A sua última obra, publicada em 1997, foi igualmente de filosofia: "Existencialistas e Místicos" (ainda não editado em português). Esta veia filosófica transparece, aliás, nas interrogações de muitos das personagens os seus livros - escreveu 27 romances - personagens atormentadas da classe média que compunha numa escrita atravessada por um humor muito próprio. "A vida é terrível, mas muito divertida", costumava dizer a escritora.Foram alguns destes romances, nomeadamente os premiados - "The Sacred and Profane Love Machine" venceu o Whitbread Prize em 1974 e "The Sea, The Sea" foi galardoado com o Booker Prize de 1978 - que a tornaram uma autora de culto entre os britânicos, uma escritora que Malcolm Bradbury, um seu par, considera, salientando a quantidade e a qualidade da obra, como fazendo parte dos "quatro ou cinco maiores escritores da segunda metade deste século publicados na Grã-Bretanha, ao lado de William Golding ou Anthony Burgess".Discreta e modesta ao longo de toda a sua vida, Iris Murdoch não se considerava, porém, uma escritora importante. Numa das suas últimas entrevistas, disse que o seu problema era não ser verdadeiramente uma grande escritora: "Eu jogo na segunda divisão, não estou entre os deuses como Jane Austen, Henry James ou Tolstoi".No entanto, a sua obra é tida como a de uma autora que soube fazer a síntese entre a novela tradicional e a modernidade. Os temas obsessivos dos seus livros, uma certa moral anárquica, as maquinações e artifícios literários e as obsessões sado-masoquistas (incesto, adultério, assassínio e maldade) tornam-na uma herdeira, não de George Eliot com uma pincelada de Brontë como ela imaginava, mas de Dostoievski. Ela mesmo dizia que as tramas complexas dos seus livros, não eram mais do que "mistérios eróticos e profundos e negros combates entre o bem e o mal". Peter Conrad no "The Guardian" de ontem, num artigo que titulou "Uma testemunha do bem e do mal", a propósito da morte da escritora, escreve que os melhores romances de Murdoch combinam na perfeição o universo daquele escritor russo com o romantismo cavaleiresco e as comédias amorosas de Shakespeare. Murdoch partia da tradição victoriana que combinava o realismo com a fantasia, a que acrescentava elementos mitológicos, por vezes de uma forma desconcertante, e ainda uma forte atmosfera filosófica. A sua perscrutação da mente humana era de tal forma incisiva e perturbante que muitos leitores sentiam que pertenciam ao seu mundo literário.Murdoch escreveu também peças de teatro e poesia, mas evitava misturar os géneros literários. Os seus romances distinguem-se perfeitamente das obras filosóficas. As peças de teatro "A Severed Head", "A Italian Girl" e "The Black Pince" obtiveram grande sucesso. Dos romances, encontram-se editados em português, além dos acima mencionados, "O Cavaleiro Verde" e "O Dilema de Jackson", ambos da Europa-América, "Acasto-Dois Diálogos Platónicos" e "Henry e Cato" na Cotovia e "Os Olhos da Aranha" da Difel. Nos últimos anos da sua vida, Iris Murdoch vivia recolhida com o marido, o escritor e professor John Bayley, que a homenageou num livro de memórias intitulado "Iris: a memory". Bayley que foi casado com escritora durante mais de quatro décadas e sublinhava que ela foi a única paixão da sua vida, disse: "Iris não navegava na escuridão: a viagem acabou e sob a sombria escolta da Alzheimer, ela parece ter chegado a algum lado. Tal como eu".Jean Iris Murdoch nasceu em Dublin a 15 de Julho de 1919 e doutorou-se em Oxford, em Línguas Clássicas e Filosofia. Ainda na Universidade foi membro do Partido Comunista mas deixou-o, desiludida, passado algum tempo. Durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou no Tesouro Britânico e em campos de refugiados na Áustria e na Bélgica. Devido à sua postura humanista de esquerda foi-lhe recusada entrada nos EUA. Ensinou filosofia durante quinze anos em Oxford até 1963. A sua personalidade e popularidade e o conjunto da sua obra valeram-lhe o título de "Dame of the Order" do Império Britânico, o equivalente ao título masculino de Cavaleiro.Um dia perguntaram-lhe por quem gostaria de ter sido influenciada. Iris respondeu: Homero, Shakespeare, Tolstoi, Dostoievski e Proust. Como os grandes escritores deste século, também ela tem um pouco de todos eles: no caos, na emoção, na turbulência, na imaginação, no amor, na palavra.

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