Fanzines, poezines e prozines

Um grafismo experimental, um conteúdo fragmentado sobre muitas coisas ou coisa nenhuma define, se for possível, o fanzine enquanto forma de expressão. Um meio de comunicação alternativo que, mercê dos baixos custos, seduziu William Blake. A VI Feira Internacional está aí até dia 30.

Chamam-lhe "Ponto". Quem conhece a margem sul à beira Tejo já se habituou a contar com as iniciativas da Casa Municipal da Juventude, o tal ponto de encontro de Cacilhas. É aí que desde dia 15 e até ao próximo sábado decorre a VI Feira Internacional do Fanzine. Fanzine? Publicações de rua tradicionalmente ligadas a uma "comunicação que insiste em afastar-se dos processos de edição formais", esclareceu ao PÚBLICO Carla Patrocínio, responsável pela organização do certame que mais uma vez associa os autores portugueses aos estrangeiros, num "passa palavra" que mostra cerca de 300 fanzines oriundos de 25 países. A feira, essa, "tem vindo a crescer todos os anos, em número de participantes e visitantes, e enquanto projecto de animação".Quem sobe as escadas e se dirige à sala de exposições depara-se com uma enorme azáfama. Em contraste, uma janela para o rio oferece a serenidade de um longo olhar sobre Lisboa. Uns ocupam-se do som, outros dos fanzines-vídeo e dos da internet. Por toda a parte sente-se a animação de um espaço criado a pensar na troca de conhecimentos entre os que "encontram no fanzine a possibilidade de dar azo à imaginação e à criatividade crítica", diz Carla Patrocínio.Entre fanzinistas e curiosos a sala está cheia. Nas redes suspensas do tecto encontram-se pendurados fanzines que apresentam as mais variadas tendências políticas e culturais. Desde os fanáticos da música aos do design, passando pelos do cinema, da BD ou da poesia. "Aqui vale tudo", garante a organização. Os desafios lançados a cada capa pretendem provocar o leitor, colocando-o perante a possibilidade de conflitos raciais, de revoluções sociais e artísticas. No Brasil, a BD japonesa invade as páginas e um tal Isunami, herói por acaso, promete "gatos de montão e ilustrações quentíssimas" enquanto o "Glória, Glória, Aleluia" se fica pelos quadradinhos e água benta. Na Eslovénia, as preocupações de ordem política ditam a agenda dos fanzines que continuam a afirmar que trazem notícias do outro lado cortina de ferro.Dos EUA à Austrália, os movimentos anarquistas difundem as suas mensagens em "boletins contra-informativos" que chamam a si a luta pela liberdade de expressão, transformando os grandes ditadores em "frankensteins".Por cá o panorama não é diferente. Há três anos, António Vitorino criou com quatro amigos um dos primeiros poezines de Almada - o "Debaixo do Bulcão". Associando-o a concertos, artes plásticas e dramatizações no largo de Cacilhas, tem vindo a divulgá-lo pelo concelho. A distribuição é gratuita e faz-se, sobretudo, na Casa da Juventude e nas juntas de freguesia que apoiam o projecto. Se lhe perguntamos se considera o fanzine uma forma de auto-exclusão, responde: "A maioria das pessoas entra nisto por não ter outra forma de se exprimir publicamente."O carácter restrito do meio editorial português foi o que levou Tiago Gomes a criar a "Bíblia", publicação que muitos definem como um prozine - um fanzine com elevada qualidade de produção - e outros como revista, devido à sua periodicidade e cadeia de distribuição: "Fiz a revista para incentivar todos os que têm vontade de publicar o que escrevem e não conseguem chegar às editoras. A 'Bíblia' apareceu para que essas pessoas possam pensar que não criam para a gaveta." Apesar de estar ligada ao mercado do livro, a "Bíblia" mantém ainda alguns dos traços que marcam a personalidade de um fanzine - o trabalho gráfico experimental, a composição livre e um certo "ruído gráfico que funciona para a revista como o 'feed-back' para a música", como resume Tiago Gomes. Depois disso vem a ironia e o humor que sempre o atraíram na arte, associados "a uma pontinha de irreverência política, cultural e social".Para o fanzinista Marcos Farrajota "a única regra é a inexistência de regras". Se assume o fanzine "como um acto de amor", é para a seguir confessar o receio da padronização que o computador e a "political correctness" podem trazer a um universo que o sociólogo Orlando Garcia define como "intenção carismática que decorre do novo associativismo "ad hoc" - o dos que se juntam para fazer coisas em comum sem que para isso se insiram no formalismo das colectividades". João Paulo Cotrim, director da Bedeteca de Lisboa, defende que o aparecimento do fanzine se dá no século XVIII, com "Cantigas da Inocência da Experiência", de William Blake. Justifica-o referindo o carácter "pouco ortodoxo" dos poemas aí publicados e o facto de Blake imprimir, decorar e distribuir os seus próprios livros. Quando, nos anos 60, se assiste à explosão do fenómeno, "é a imprensa que abre caminho à ideia de que no fanzine tudo é possível". Só que esse "tudo" não chega. Falando da "pobreza" do panorama nacional, João Paulo Cotrim afirma que, actualmente, não há nada nestas publicações "ditas alternativas" que não se possa encontrar noutras revistas.Para os que quiserem entrar em contacto com esta forma de comunicação, a feira encerra no dia 30, com o espectáculo de teatro-dança "As Águias não Geram Pombas", às 21h30, no "Ponto".

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