Mapa emocional dos Belle Chase Hotel

Os Belle Chase Hotel iniciam na próxima quinta-feira uma série de três concertos no "foyer" do Teatro Rivoli. Para melhor entender a "fossa nova", um estado de espírito fim-de-século que se transformou em título do seu primeiro álbum, Pedro Renato, compositor e guitarrista do grupo, fez uma digressão pela sua colecção de discos.

Porquê este entusiasmo todo?, perguntará o leitor ao deparar-se periodicamente com mais um artigo a propósito dos Belle Chase Hotel (BCH), que lançaram apenas há um mês o seu primeiro disco, "Fossa Nova". A música feita em Portugal vive em estado de graça. Enumeram-se fenómenos inéditos de popularidade, dos Excesso aos Silence 4, o aniversário dos 20 anos dos Xutos, o reencontro com o fado através de António Chaínho e as suas ilustres convidadas. Para quê, então, esta insistência num grupo de Coimbra, ainda mal conhecido e sem nenhum feito nos tops de vendas?É que há muitos anos que não surgia uma música tão profundamente comovedora e libertina, celebrando os desacatos amorosos com uma fúria mundana e reservando para a melancolia o devir de um tempo condenado aos destroços. Numa altura em que as artes populares abocanham o primeiro paradigma que lhes passe pela frente, os cépticos defendem que tudo o que o grupo faz já se ouviu há muito tempo, enquanto os ignorantes comparam-nos aos Tindersticks mal os vêem entrar em palco de cigarro na boca e copo na mão. "Mas a noite não se importa e cresce na roupa interior", canta J.P. Simões num dos seus temas.A propósito da actuação dos BCH no Rivoli do Porto (quinta, 21, sexta, 22 e sábado, 23), o PÚBLICO falou, na Rádio Universidade de Coimbra, com Pedro Renato, compositor e guitarrista do grupo. No encontro também esteve o vocalista e letrista JP Simões. A combinação era músico e jornalista levarem cada um cinco discos para uma troca de impressões sobre influências, afinidades e gostos musicais. A proposta era criar um mapa da localização emocional de "Fossa Nova" e discos vindouros. Não fosse o diabo tecê-las, o jornalista levou quase trinta discos, não estava era à espera que Pedro Renato fizesse o mesmo. O primeiro disco posto a tocar foi de Esquivel e a faixa escolhida "Sentimental journey". Pedro Renato, admirador de easy-listening (ou do chamado "bachelor pad music"), chama a atenção para o uso de onomatopeias nas orquestrações do mexicano: "Dou muito valor à composição mas músicos como Esquivel, que fazia muitas versões, têm arranjos tão fora do comum que é impossível não lhes dar valor". Os BCH são compostos por nove elementos, pelo que dá mais atenção aos arranjos do que ao trabalho específico de guitarrista: "Tenho tendência para imaginar logo o quadro todo, não consigo partir só de uma base de acordes. Normalmente, os arranjos ou a melodia é que surgem primeiro, só depois é que vejo quais são os acordes a que isso corresponde". JP Simões conta que esse cuidado nos arranjos surgiu por necessidade. A sala de ensaios da banda é pequena de mais para os seus nove elementos. Alguns dos músicos são virtuosos e um deles, Luís Pedro Madeira, toca vários instrumentos. No início, a bagunça era tanta que o baterista, Antoine Pimentel, um apaixonado pelo jazz com a obsessão do rigor, saía dos ensaios com cara de poucos amigos. Regressando aos discos, "Cadillac", uma versão de Nino Rota pelos Combustible Edison, do álbum "I, Swinger", foi o tema seguinte. "É o meu grupo de eleição dos anos 90", comenta Pedro Renato. Quer isso dizer que a música que o interessa é a que revisita o seu próprio património. (Cinco horas depois, antes da despedida, Pedro Renato pôs a tocar, ainda de "I, Swinger", uma versão de Kurt Weill, "Surabaya Johnny" e "Carnival of souls").Como réplica, o PÚBLICO mostrou-lhe a compilação "S.P.Y.T.I.M.E.", com temas para cada um dos livros de Ian Flemming sobre James Bond. Pedro Renato desconhecia que os temas desta compilação tinham sido compostos antes dos filmes. Tentou trautear a versão de "Goldfinger", de John Barry, cantada por Shirley Bassey, por cima da que tinha sido feito antes, também por Barry. De resto, é um tema que pretende tocar nos BCH, só lhe falta convencer os colegas. O tema dos BCH, "Wrong kind of blues", tem uma melodia que faz lembrar a de "John Bond theme" e ambas foram postas a tocar. Comparadas, são completamente diferentes mas a canção dos BCH tem um final tão veloz que até parece um filme de acção. "Cheguei a um ponto em que já não conseguia pensar na música sem me lembrar de John Barry", comenta JP. Passou-se depois a "The Black Ryder", de Tom Waits, em que este canta com sotaque alemão. Renato admira-lhe a sujidade da música, que é trabalhada até parecer imperfeita, espontânea. "São estas as produções de que gosto", afirma, enquanto põe um disco dos espanhóis Adventures In Stereo, que usam um ruído branco a meio da faixa "When we go back". JP lembra que a maqueta de "Fossa nova" tinha como ruído de fundo um maço tabaco a ser amarrotado.No próximo disco - em que surgirão, para além de composições suas, outras de Marco Henriques e Luís Pedro Madeira - Renato pretende apostar no trabalho de estúdio, o que não pôde fazer em "Fossa Nova". Mas quer tocar com o grupo junto, como se fosse ao vivo. O PÚBLICO apresentou-lhe então "Running scared" de Roy Orbinson, numa interpretação de Nick Cave. Renato confirmou a proximidade dos BCH dessa crueza, mas fez questão de assinalar a secção de cordas que adorna o tema. É uma contradição que define bem a esquizofrenia entre a espontaneidade (ao vivo) e o apuramento estético (em estúdio) pretendida pelo grupo, na opinião de JP Simões. Martin Denny, Arthur Lyman, Peter Thomas foram outras escolhas de Renato. Por oposição às músicas de sofá, de carpete exótica ou de quarto de hotel, apresentámos-lhe então as bandas sonoras que os músicos de soul Marvin Gaye, Isaac Hayes e Curtis Mayfield fizeram para "blaxpoitation movies" dos anos 70. JP disse que cresceu a ouvir "Trouble Man" e, de facto, a dramaticidade de Gaye escondida em temas de acompanhamento aproxima-se mais dos BCH do que o "easy-listening" puro. "Gosto de easy-listening, de lounge music, mas não sinto [de forma] lounge, sou incapaz de perder o lado sentimental com a música". E lembrou as compilações "Vampyros Lesbos" e "Beretta 70", de compositores alemães de filmes pornográficos. Personagem cara a JP Simões, o "Casanova" dos Roxy Music tinha que ser incluído. "Tenho uma relação de amor-ódio com o Bryan Ferry", disse, comentando seu o lado erótico e sentimental. "Não deixou nada para dizer?", perguntou-lhe Renato. "São pretextos para uma excelente execução...", respondeu JP Simões, confessando que a versão de Ferry para "These foolish things" o enternecia mais que a de Billie Holliday e lembrando os versos "Casanova is that your name or do you live there?" (Casanova é o teu nome ou o sítio onde vives?). "Casanova" é também o disco de Divine Comedy que ambos preferem, mas o PÚBLICO escolheu "Fin de Siècle". Renato achou piada ao exagero a que são levados os arranjos orquestrais e escolheu "Sweden", que considera "completamente Kurt Weill". "Perennial Favorites", dos Squirrel Nut Zippers, e "The Impossible World", dos Combustible Edison, são outros discos recentes que admira. Mas são também influências? JP Simões explicou-se com "o princípio da máquina do professor Baltazar": "Ele tinha uma quantidade de engenhocas fabulosas à sua volta, mas depois só saía um pinguinho".

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