Íntima peça de câmara

O novo espectáculo dos novaiorquinos Wooster Group - que protagonizaram um dos momentos altos do festival Mergulho no Futuro, da Expo - parte de materiais de culto: um filme dos anos 60 e a famosa ópera de Gertrude Stein, "Doctor Faust Lights the Light". Pretexto para uma conversa com a encenadora Liz LeComte, após a estreia mundial da peça, agora em circulação.

Poucas experiências neste mundo podem rivalizar com uma "performance" do Wooster Group, a companhia multimédia sediada em Nova Iorque, que actuou pela última vez em Portugal o ano passado, no festival Mergulho no Futuro . Intelectualmente estimulantes, visualmente vitais, os espectáculos deste grupo resistem a várias visões porque há sempre algo novo a absorver. Não há hipótese de aborrecimento. Depois de a nova produção, "House/Lights", ter estreado no final do ano passado, a peça começa agora a circular internacionalmente.Fundado em 1975 por Liz LeCompte e Spalding Gray, o Wooster Group especializou-se na desconstrução de textos existentes - peças, romances - mas "tornando-os absolutamente claros", segundo LeCompte, através da utilização de microfones. Enquanto "LSD: The High Points" pegava em "The Crucible", de Arthur Miller, "Brace Up" (exibido em Lisboa há seis anos) era baseado em "As Três Irmãs", de Anton Chekov, e "The Hairy Ape" (apresentado no festival Mergulho no Futuro) apresentava o texto integral de Eugene O'Neill.Falando em monótonos monólogos e exibindo uma espécie de coreografia tribal, os actores raramente olham uns para os outros durante uma performance do Wooster. Segundo LeCompte, esse registo é o da pose dos repórteres televisivos que debitam informação catastrófica sem pestanejarem.A performance, ao vivo no palco misturada com imagens pré-filmadas, dá a sensação de que se está a ver um filme em vez de se estar num teatro, e esta estratégia original deixa invariavelmente as audiências com sensações contraditórias de espanto e adoração. Os entusiastas do Wooster Group são geralmente pessoas que vão ao cinema e a espectáculos de música e pessoas que vêem muito televisão, diz LeCompte. "As pessoas que têm dificuldade em aderir ao nosso trabalho são as que passaram a vida inteira com a ideia de que o teatro é uma forma de arte separada da televisão".Ao longo dos anos a formação do Wooster Group mudou pouco, mas alguns dos seus membros partiram. Spalding Gray decidiu caminhar sozinho e partiu em tournée mundial com a sua série "Swimming to Cambodia", que foi adaptada ao cinema; Steve Buscemi foi em tempos membro mas dedicou-se ao cinema, e, a partida mais triste e saudosa, o falecido Ron Vawter cujos tons graves eram perfeitos para a linha do Wooster.O mais famoso membro do Wooster Group, no entanto, tem sido sempre Willem Dafoe que depois da morte de Vawter ficou com o papel não oficial do intérprete masculino líder da companhia. Também é o companheiro (consideravelmente mais jovem) de LeCompte e o casal tem um filho adolescente, Jack, que de tempos em tempos aparece nos espectáculos. Dafoe chegou à companhia com 22 anos e sempre misturou os seus compromissos teatrais e cinematográficos e enquanto tinha o papel principal em "The Hairy Ape" tinha um papel mais pequeno no anterior espectáculo do grupo, "The Emperor Jones", onde facilmente podia ser substituído. Dafoe não está presente em"House/Lights". Kate Valk tem o papel principal.Quando "House/Lights" foi apresentado em Bruxelas, no final do ano passado, duas semanas antes da estreia mundial num festival da Holanda, o espectáculo estava longe de estar acabado. LeCompte descreve os seus espectáculos como permanentes "works in progress", e neste caso o festival holandês ia apresentar uma versão meia-completa."Eles disseram: 'Não interessa que não esteja acabado, queremos o espectáculo'", recorda LeCompte como um sorriso. "Penso como qualquer outro bom artista que mesmo incompleto o meu trabalho é bom. Mas é como se as pessoas estivessem a espreitar para a minha roupa íntima".A conversa com LeCompte decorreu em Bruxelas no dia seguinte à apresentação de "House/Lights" no (flamengo) Kaai Theatre, um espaço habitual para o Wooster Group. O Kaai é também produtor de alguns dos "shows" do Wooster, o que não acontece aliás neste espectáculo. O Group tem uma série de produtores na Holanda e na Alemanha, países onde toda a gente fala inglês, mas devido à barreira linguística o Wooster raramente se apresenta em França e no sul da Europa. Foi uma surpresa agradável para LeCompte ver "Brace Up" ter uma resposta bastante positiva em Lisboa, por isso foi com imenso agrado que o Wooster regressou, o ano passado para a Expo, com a sua versão de "The Hairy Ape", de Eugene O'Neill."Actuámos num pequeno teatro de 350 lugares, era um espaço maravilhoso e a peça resultou muito bem lá", diz LeCompte. "As pessoas pareciam realmente perceber a linguagem, o que me espanta imenso porque O'Neill utiliza imenso dialecto. Mesmo o público americano têm que o entender como experiência musical [ela considera o seu trabalho como uma nova forma de musical] porque alguns dos dialectos estão moribundos ou não são usados há anos. Mas os portugueses conseguiram perceber as nuances da linguagem"."The Hairy Ape" foi a maior produção de sempre do Group, e com Dafoe no papel principal foi também a estreia da companhia na Broadway. "Fizémos um acordo com o produtor que nos ajudou no financiamento e tivémos uma garantia de bilheteiras que nos aguentou durante um ano", explica LeCompte. A maior parte das peças do Wooster, diz, "não conseguiriam aguentar tanto público. Tentamos isso com espectáculos com maior potencial de mercado [ou seja, com Dafoe no papel principal] porque são mais fáceis de vender".Geralmente os espectáculos são criados especificamente para o seu próprio teatro, o Performing Arts Garage na Wooster Street Soho, em Nova Iorque, onde as temporadas podem ser tão longas quanto eles desejarem. Certamente que "House/Lights" - que LeCompte descreve como uma peça de câmara - foi criado para um espaço íntimo e pequeno; ela gosta que o teatro seja íntimo. Uma mistura da ópera de Gertrude Stein "Doctor Faust Lights the Light", de 1939, e do filme kitsh, de culto, "Olga's House of Shame", de 1964, "House/Lights" é denso e complexo, um dos mais estimulantes trabalhos do grupo desde sempre.. No princípio, LeCompte partiu apenas do filme, mas Stein persistia em insinuar-se na peça. "Aconteceu estarmos a ler Stein por essa altura, então houve uma espécie de fusão inesperada." Usar dois textos era mais satisfatório? "É o que as pessoas perguntam sempre, mas eu não penso muito nisso. Preocupo-me com a melhor forma de um texto resultar, ficar claro, na forma de encontrar o coração do texto. Às vezes significa usarmos o texto integralmente, às vezes não". "House/Lights" começa com uma bela dança de luzes de um lado para o o outro do palco. Kate Valk lê o texto de Stein, num monólogo etéreo, enquanto a sua imagem é reproduzida no écran, de uma forma que se assemelha a uma cena de um filme antigo a preto e branco, a passar numa velocidade mais lenta. "É apenas a luz que a torna tão diferente, é apenas através da câmara, uma boa câmara digital que lida muito bem com a luz", explica a encenadora.Admitindo que as suas capacidades técnicas são limitadas, LeCompte diz que confia muito nos seus colaboradores: "Os intérpretes trabalham habitualmente com algo que não foi experimentado antes, muitas vezes é duro e eu não sei como ensinar-lhes. Apenas sei como resulta na minha cabeça, mas não sei como ajudá-los a chegar a esse resultado. Portanto, há sempre uma luta para chegar a essa imagem que eu imaginei". Autêntica filha dos anos 70, LeCompte usa o trabalho como um meio de auto-descoberta: "Em "House/Lights" utilizo o filme de Mawra para encontrar um mundo fisíco para este palco e olho para o texto de Stein para determinar quem ela era, quem a mulher era, quem a escritora era. Não creio que ela quisesse que isto fosse fácil, mas também não acredito que tenha querido tornar tudo mais difícil. Penso apenas que ela estava a trabalhar como eu estou a trabalhar, e espero que as pessoas, ao observar-nos a ambas, o trabalho dela já feito e o meu em construção, sintam que alguma coisa de divertido acontece aqui."

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