Um mês em Portugal para serem só crianças e não meninos de Chernobyl

Programa traz para Portugal durante um mês 34 crianças da zona do acidente nuclear. A ideia é recuperarem saúde e conhecerem um outro mundo em ambiente de férias nas famílias de acolhimento. Fomos conhecer Diana e Karolina.

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Segundo algumas estimativas, passar um mês longe das zonas afectadas, pode valer aos meninos de Chernobyl mais um a três anos de vida Miguel Manso
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Segundo algumas estimativas, passar um mês longe das zonas afectadas, pode valer aos meninos de Chernobyl mais um a três anos de vida Rui Gaudêncio

Pêssego, gelado, sumo… As palavras saem da boca de Diana com um entusiasmo fora do comum e com a mesma convicção com que pronuncia “plyazh” (praia), babushka (avó) ou krasyva (linda). A menina ucraniana de oito anos está há menos de uma semana em Lisboa e o português já se mistura com a língua materna. Mas a linguagem universal ainda depende dos gestos e do sorriso que nunca lhe abandona a cara – e que não deixa dúvidas que quaisquer que sejam as palavras incompreendidas só podem ser de felicidade. Está a ser criança. Vai ser criança durante um mês. E depois? A seguir a família de Rogério e Fátima Costa prefere não pensar no regresso da menina à zona de Chernobyl. Vive na área afectada pela radiação do acidente nuclear de há quase 30 anos e faz neste Verão uma pausa nessa pesada herança. Com ela vieram mais 33 meninos para Portugal, onde famílias de acolhimento de várias zonas do país os esperam para umas férias diferentes.

De chapéu na cabeça e uma t-shirt com os bonecos próprios da idade, Diana Pravosud corre pelo Parque da Serafina, em Monsanto, Lisboa, como qualquer criança de oito anos. Vem com Rogério, Fátima e com a filha do casal, Carolina, de 16 anos. Passa por filha mais nova. Só os olhos vivos, curiosos, sempre a pousar em tudo com o ar de novidade denunciam o novo mundo que lhe foi apresentado há pouco tempo. Foram esperá-la ao aeroporto no dia 12 de Julho, quase de madrugada, e ficam com ela até meados de Agosto. Sabiam apenas o seu nome, idade, e tinham visto uma fotografia. A primeira a descobrir o programa que permite que famílias portuguesas acolham meninos de Chernobyl durante um mês foi Carolina. Viu nele uma junção entre a vontade de ajudar e de ter uma irmã, ainda que por pouco tempo.

Fátima e Rogério apoiaram a ideia e contactaram a Liberty Seguros, que arrancou com esta iniciativa no âmbito da responsabilidade social da empresa em 2008. Os primeiros meninos chegaram no ano seguinte, altura em que o projecto Verão Azul era apenas para colaboradores. O interesse de outras famílias como os Costa foi tal que abriram as portas, e de uma dezena de crianças passaram a trazer mais de 30. A organização e viagem ficam por conta da seguradora, o resto cabe às famílias seleccionadas. Fátima é professora de geografia, Rogério consultor na área das tecnologias de informação. Garantem que não é preciso muito para receber uma menina como Diana. “É ter vontade de ajudar”, diz Rogério. “É agirmos com o coração”, acrescenta Fátima. As gargalhadas em família são constantes e os planos para a pequena Diana também: do Jardim Zoológico às praias do Algarve, o roteiro é extenso e adaptado cada dia às reacções.

Segundo algumas estimativas, passar um mês longe das zonas afectadas, com acesso ao sol e uma alimentação correcta, pode valer aos meninos de Chernobyl mais um a três anos de vida. Nesta altura há vários países a recebê-los, de Espanha aos Estados Unidos. Estudos à parte, a nova família não duvida que alguma coisa Diana vai ganhar. “Ela é a nossa princesa durante estas férias. Queremos torná-la feliz e fazer com que faça parte da família e não pense muito na realidade para onde terá de voltar. Quero que seja verdadeiramente uma criança, pois nota-se que está habituada a fazer a cama e outras tarefas domésticas e que não está habituada a fazer jogos à noite ou que brinquem tanto com ela”, diz Fátima.

A vida de Diana na Ucrânia é sobretudo deduzida pelos comportamentos e por palavras soltas, mas com a enorme ajuda das novas tecnologias. A família conta com umas folhas ilustradas, que fazem a vez de dicionário. Mas o grande apoio vem mesmo do tablet de que tanto a menina como Fátima, Rogério e a “irmã” Carolina se socorrem para se fazerem entender, usando o tradutor do Google. “O mais curioso é que o alfabeto cirílico tem um conjunto de caracteres que vêm do russo e outros que vêm do latim. O mais difícil é que há caracteres que são como as nossas letras, como o H, mas que para eles se lê como o nosso N”, explica Rogério, que fez o trabalho de casa para receber Diana.

É por escrito que Diana conta que vive numa aldeia chamada Zoren, a menos de 50 quilómetros da central nuclear, com os solos ainda contaminados. Os pais são casados, como comprova um álbum de fotografias, e tem uma irmã de apenas um ano. Com dois dedos faz o gesto de caminhar para explicar que a pequena já começou a andar. Em português reconhece já as palavras de alimentos de que gostou e o nome da avó/babushka Ilda, que também a adoptou nestas férias. Ao mesmo tempo rejeita com um “no, no, no” muito determinado a palavra “dormir”. Quer viver este sonho acordada. Diana sai várias vezes da conversa para, pela mão, levar o “papá Roger” para os baloiços e escorregas, onde faz questão de posar para muitas fotografias e vídeos. Foi com ele que soube também o que era um Lego, e já montou um puzzle completo em pouco tempo.

Fátima ainda não precisou de usar a frase mais temida e que decorou em ucraniano: “Não chores”. A única vez que viu Diana triste foi quando um resto de gelado foi fora. “Percebi que o desperdício é algo que os incomoda muito.” Muitas das crianças chegam envergonhadas e estranham a nova cultura e até mesmo os simples hábitos de higiene, como usar a sanita. Não é o caso de Diana, assegura Carolina, para quem a nova irmã parece “uma sombra”. As tentativas de seguir os exemplos são tantos, que quando percebeu que a família Costa deixava os sapatos à entrada de casa foi buscar todo o calçado que trazia e depositou-o ali. Quando viu a bomba de asma de Rogério foi buscar a sua também e mostrou-a. Muitas das crianças e adultos que ficaram a viver nas imediações de Chernobyl têm problemas respiratórios, de pele, na tiróide e desenvolvem frequentemente anomalias no funcionamento dos órgãos ou cancros. São fruto do teste de rotina que desencadeou, na madrugada de 26 de Abril de 1986, o pior acidente nuclear da história, que só Fukushima conseguiu igualar em 2011.

Paulo Pires conhece a realidade de Chernobyl mais de perto. Trabalha na área de sinistros automóveis da Liberty e desde o primeiro ano que acompanha o projecto e recebe crianças juntamente com a mulher, a gestora ambiental Paula Mourão, e com os filhos de 21 e 19 anos. “Achámos que era útil para os nossos filhos terem noção de outras realidades, do que custa a vida e do que é viver noutras circunstâncias”, observa Paulo. Primeiro acolheram durante vários anos a Alina. Em 2014 e neste ano recebem Karolina Vasyanovych, de 15 anos. Alina já está na universidade – um feito raro e praticamente inacessível à maioria destes meninos. Mas, como já faz parte da família Pires, regressa na mesma como ajudante da monitora ucraniana que vem também para Portugal e que as famílias podem contactar para dúvidas sobre as crianças ou para o caso de surgir algum problema de saúde.

Paulo costuma ir à Ucrânia em Novembro, ajudar na preparação e selecção das crianças e, em Julho, faz a viagem com elas de Kiev para Lisboa. Vai buscá-las a Ivankiv, a vila mais próxima das aldeias onde moram estes meninos. Este ano contou com Paula na viagem. A alegria de Diana no autocarro e na estreia de avião não escapou à atenção do casal, até porque não é comum serem logo tão expansivos. Apesar de ser já o segundo ano que vem para Portugal e para esta família, Karolina está com a língua enferrujada e as palavras só saem com muito custo. Acena muito quando se pergunta se gosta de Lisboa e de praia. Sobre o futuro, adianta por gestos e palavras que quer ser professora de “pequenos”.
Gosta de ficar sossegada, se for com um tablet ainda melhor. “Tento estabelecer regras para não se isolar. Faço com ela como com os meus filhos, mas às vezes sou mais permissiva. É uma oportunidade de levarem um banho de cultura”, diz Paula. Compreendem a necessidade de Karolina ser criança. “Vem de uma família de 11 irmãos, a mais nova com três meses. É a mais velha das raparigas e acaba por ser uma mãe dos irmãos”, explica Paulo. Um dos irmãos de Karolina está em Aveiro no âmbito deste programa, enquanto outros foram para Espanha.

Sobre o acidente de Chernobyl Paulo diz que as crianças falam pouco, numa “notória herança do anterior regime”. “É tabu. Os pais quase não falam, não querem dizer aos filhos que vivem numa zona contaminada”, explica. Ainda assim, Paula recorda que percebeu que não arriscam tomar banhos nos lagos da região. “Mas pescam e comem o peixe de lá. Os legumes também vêm daquelas terras, quase não crescem”, descreve. Karolina vive numa família que consome apenas o que produz. É uma família pobre mas funcional, que contrasta com a realidade de muitos lares desestruturados. Por isso, Paulo e Paula pensam que o principal objectivo, quando acolhem estas crianças, é dar-lhe um mês longe de preocupações, com doses equilibradas de lazer e conhecimento, apesar de os programas de praia e compras costumarem ser os preferidos dos meninos ucranianos.

“Os pais sabem que eles ali não têm futuro e que estes programas lhes abrem horizontes”, afirma Paulo, que salienta que a “alegria e motivação” que trazem à sua casa e família neste mês “compensa muito”. A pergunta “E depois?” é a que arranca uma resposta mais difícil. “Irem embora é uma desgraça, ainda não me habituei. Mas agora eles têm Internet e é mais fácil. Emocionalmente é muito difícil, mas ainda é mais quando em Novembro vou lá e vejo as condições em que vivem, numa altura de neve e frio”. As lágrimas mal disfarçadas são rapidamente compensadas pela reacção divertida de Karolina à palavra Rússia. “Putin e Rússia, no, no, no”, diz com um sorriso, naquela que é a reacção mais efusiva de toda a tarde.

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