Pesca: vício para um milhão de portugueses

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A pesca desportiva é uma espécie de vírus que ataca um em cada dez portugueses Nuno Ferreira Santos

Um em cada dez portugueses tem o vício da pesca. São um milhão os que, todos os anos, compram a respectiva licença para, no mar ou em água doce, faça sol ou caia chuva, darem satisfação a uma actividade que movimenta milhões de euros. O negócio, apesar da crise, floresce, ao ponto de existirem mais de 300 estabelecimentos especializados na venda de material. Há imprensa especializada e até se viaja para outros continentes na esperança de sentir a cana vergar com o peso recorde de um peixe.

Há dois anos o Estado determinou o pagamento de uma licença para quem quisesse pescar no mar, fosse a partir da praia ou empunhando uma cana dentro de um barco. Se o objectivo era obter receitas, então a medida foi um êxito: todos os anos há 700 mil portugueses que se dirigem à caixa multibanco mais próxima e, a troco de um montante (12 a 60 euros) que varia consoante o tipo de pesca e a sua periocidade, sacam o papel que os habilita a exercer a actividade. Os outros 300 mil que têm o vício, esses compram nos serviços do Ministério da Agricultura e Pescas, nas câmaras municipais ou nas juntas de freguesia, as licenças que podem ser nacionais (todo o país), regionais (para Sul ou para Norte do Tejo) ou concelhias (permitem a actividade no concelho escolhido, mas também em todos os outros que com esse façam fronteira).

Tratou-se, de resto, de impor para o mar as regras que vigoram há dezenas de anos na água doce. À semelhança do que se passa nos rios e barragens, também no mar se estabeleceram tamanhos a partir dos quais se permite capturar cada espécie. Só o defeso (em vigor de 15 de Março a 31 de Maio para a água doce) separa agora os dois tipos de pesca.

Não se pense, no entanto, que o material utilizado no mar é adequado para os rios e vice-versa. De facto, as maiores semelhanças entre os dois tipos de equipamento cingem-se apenas a alguns preços, porque a especificidade das linhas, a capacidade dos carretos, os tamanhos dos anzóis e bóias, as dosagens do chumbo e a configuração das canas, para já não falar nas técnicas utilizadas, são tão diferentes como diferente é um achigã de um espadarte.

Para quem possa pensar que um milhão de portugueses encartados é um número exagerado, adianta-se aqui que em Inglaterra a pesca de água doce tem mais de cinco milhões de licenças vendidas anualmente e que até existem canais de televisão cujas transmissões são apenas relativas à pesca e ao que lhe está associado: turismo, indústria, postos de trabalho.

Do surf casting ao big game

Os 700 mil que pescam no mar fazem-no de todos os modos e feitios, seja nos areais, nas rochas ou nos barcos, seja munidos de equipamento básico cujo somatório não ultrapassa os 200 euros, ou quais magnatas do anzol, a bordo de embarcações topo de gama, com canas especiais e carretos eléctricos.

O pescador que o comum dos leitores está habituado a ver é aquele que, de pé ou sentado, num areal, passa horas a olhar para a ponteira do canelão de vários metros. Este é praticante de surf casting, o modo de pesca mais cómodo e que consiste no lançamento das chumbadas a partir da praia. A força braçal repercute-se, normalmente, na captura de douradas. Uma cana custa entre 20 a 600 euros e um carreto pode ir dos 25 aos 600.

Quem pesca à bóia tem canas que oscilam entre os dez e os 250 euros e carretos que oscilam entre os 17 e os 400. Este tipo de pesca está em vias de perder o título de “mais trabalhosa”, uma vez que irá ser proibida a engodagem (normalmente utilizam-se vários quilos de sardinha moída).

Se a dourada de mar é um prémio para qualquer pescador, a captura do robalo é uma modalidade cada vez com mais adeptos. O spinning é praticado com uma amostra (uma medalha reluzente ou um peixe de imitação cravejados de anzóis). As canas, até três metros de comprimento, custam entre 50 e 350 euros, sensivelmente o mesmo preço para os carretos. Existe ainda uma técnica denominada buldo ou curricar. Aqui também se utiliza uma amostra, que se lança e recolhe de imediato, esperando que o robalo a abocanhe. As canas mais caras, apesar de poderem ser um pouco maiores ficam, no entanto, por metade do preço das do spinning. São utilizadas bóias de água.

Para quem não aprecia a pesca apeada, há sempre a variante do barco. A mais praticada é a fundeada. A embarcação zarpa até um local previamente escolhido e lança ferro, para que os pescadores, munidos com material que não excede os 600 euros (cana, carreto, fios e anzóis) fisguem todo o tipo de peixe que se lembre de comer qualquer um dos iscos utilizados no mar e que podem ser sardinha ou camarão (vivo ou morto), casulo ou coreano, minhoca ou ganso, mexilhão, caranguejo ou ouriço.

A partir dos barcos pode-se também curricar ao robalo, sendo que um excelenete equipamento para esta faina não ultrapassa os 250 euros. Para os menos abonados a festa pode fazer-se, no entanto, por menos de um terço deste valor.

A Costa Vicentina, de grandes escarpas e mar batido, é uma das melhores zonas do país para alguns dos tipos de pesca apeada. É também uma área perigosa (em 2007 morreram sete pescadores), uma vez que as quedas são frequentes.

Quem preferir embarcar para pescar pargos sabe que tem de se afastar mais da costa. Este tipo de pesca, que está em crescimento em todo o mundo, chama-se zagaia e é feita com amostra.

E ainda no mar, guarda-se para o final a modalidade mais cara. É o big game, um tipo de pesca só ao alcance de alguma elite. Uma cana própria para capturar espadartes ou atuns vai dos 150 aos 400 euros e os carretos podem custar entre 200 e 700.

O big game, que é como quem diz a pesca de gente bem abonada, tem ainda uma versão um pouco mais leve no que respeita ao pescado, porque os gorazes e os chernes pesam menos que os atuns e os espadartes, mas igualmente dispendiosa, porque exige barcos especiais capazes de levar os pescadores para pesqueiros com 200 ou mais metros de profundidade. As canas ainda são acessíveis, pois que vão até aos 100 euros, mas os carretos, eléctricos, para poderem içar exemplares ao longo de centenas de metros, custam para cima de 500 euros.

O Algarve, de águas ricas em atuns e espadartes, é um dos destinos preferenciais de dezenas de turistas estrangeiros que ali praticam o big game. A sua presença durante quase todo o ano, mas sobretudo no Verão, representa postos de trabalho – aluguer dos barcos e tripulações, hospedagem, etc – e muito dinheiro a mudar de mãos.

Não se pense, no entanto, que são apenas os estrangeiros mais endinheirados que se metem num avião para chegar aos melhores pesqueiros. Muitos portugueses começam a procurar destinos como Cabo Verde, Guiné ou São Tomé (as ilhas açoreanas há muito que são utilizadas pelos continentais) para aí se dedicarem a todo o tipo de pesca. E até há os que já demandam as águas doces da Amazónia e Pantanal em cujos rios navegam peixes com mais 100 quilos e quase dois metros de comprimento.

As delícias da água doce

É impensável utilizar na pesca de água doce linhas com a mesma expessura das que se utilizam no mar. O peixe do mar é, em princípio, mais forte e não sai da água às boas, que é como quem diz com fios finos, quase invisíveis, como os utilizados nos rios e barragens. Um 0,40 mm é fraco para o mar mas, para a água doce é quase como se fosse uma amarra para prender uma embarcação. É de tal modo grosso que as principais espécies, como a carpa, o bargo ou achigã, nem se lhe aproximam.

No rio é frequente pescar-se com expessuras de 0,10 e outras ainda mais delgadas. Por vezes utilizam-se empates (o pedaço de fio que segura o anzol e que está atado ao fio principal) ainda mais frágeis. E no entanto, estas armações possibilitam, por vezes a captura de exemplares com muitos e muitos quilos. As carpas, uma espécie de vacas marítimas que com o avanço da idade procuram cada vez mais os fundos escuros e lodosos, podem ultrapassar os 20 quilos. É por isso que se diz, quando que a pesca de água doce, por permitir grandes capturas com material mais frágil, é mais técnica do que a praticada no mar, onde as linhas grossas permitem a pesca vulgarmente designada por “arranca queixos”.

A pesca das carpas grandes, das que habitam as águas mais frias e escuras, é um desafio cada vez mais aceite em Portugal e no estrangeiro (este peixe carregado de espinhas e de baixo valor nutritivo integra o principal prato da República Checa). A sua pesca pode ser feita nas variantes “inglesa”, “francesa” e “bolonhesa”, todas com bóia, ou ao fundo.

O primeiro estilo implica a utilização de uma bóia grande que pode correr no fio, permitindo que o anzol desça até ao fundo do leito, ou que pode estar fixa. Na ponteira da cana é preso um elástico um elástico, cuja segunda extremidade ata ao fio. Este elástico quebra a resistência do peixe e faz comn que este, por muito pesado que seja, perca as forças para lutar contra as linhas finas. Na “inglesa” não são utilizados carretos.

A pesca “bolonhesa” já quase não se pratica. É um tipo de pesca à bóia e com uma cana com passadores, que pode levar ou não um carreto. A “francesa” é, tal como a “inglesa”, feita com uma cana directa (sem carreto, devendo a medida da linha ser, em média, o dobro do comprimento da cana).

As canas utilizadas são muitas vezes feitas de carbono. São resistentes e podem pesar apenas um quilo, apesar de as haver com 12 e 14 metros de comprimento. A sua utilização não é aconselhável quando há trovoadas ou próximo de fios eléctricos. Muito deste material pode atingir mais de 3000 euros, havendo carretos que ascendem às centenas de euros.

Mais pequenas e com muitos passadores, as canas para a pesca do achigã (peixe oriundo da América do Norte e cujo nome – atchi gã – vem de um dialecto índio e significa “aquele que salta”, foi introduzido em Portugal pelo Estado Novo, para controlar as carpas que nadavam e se reproduziam desordenadamente nas barragens construídas na década de 1950) tem preços que raramente ultrapassam os 200 euros, o dobro do custo de um bom carreto.

Os portugueses pescam ainda, embora em menor quantidade, espécies como a truta e o salmão, utilizando medalhas, moscas e culheres que curricam na água. A truta ainda nada em alguns rios do Norte mas, por existir em pequenas quantidades, estes não são santuários para os pescadores como, por exemplo, as margens do Guadiana ou do Mondego, ricos em barbos e carpas, ou a Barragem do Alqueva, autêntico viveiro europeu de achigãs. Zonas como o Sorraia, em Coruche, ou a Ribeira da Raia, com pesqueiros em Mora e Cabeção, são frequentemente procuradas para a realização de camp+eonatos europeus e mundiais.

Quanto aos iscos utilizados na água doce, o mínimo que se pode dizer é que a ementa é... variada e exótica. Senão atente-se: A principal iguaria de carpas, barbos e bordalos é o asticot, que é nem mais nem menos do que a larva da mosca varejeira. Estes bichos brancos (também há que os tinja, mediante alimentação, de amarelo, verde, vermelho e azul) vendem-se ao litro e aguentam-se vivos desde que estejam no frio, num frigorífico. Mas se lhes colocarem no anzol petiscos como batata (cozida ou frita), esparguete (cozinhado), frutas, cenoura, pão, trigo (cozido) cânhamo, ervilha ou até borras de café, é quase garantido que eles engolem.

Muitos pescadores, para apanharem achigã, que também come asticot, utilizam no anzol as vísceras de outros peixes e de aves (tripas de galinha), mas também gafanhotos, libelinhas e, sobretuido, verdemã, que não é mais do que um pequeno peixe cuja captura é proibida mas que se vende em quase todos os estabelecimentos, sejam eles apenas de pesca ou, como acontece pelo interior do país, negócios de aldeia, onde se transaccionam, lado a lado, carretos e sapatilhas, pratos de pirex e canas de carbono, asticot e legumes. É assim a pesca em Portugal.

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