No Inverno de há dois anos excesso de mortalidade não atingiu só idosos

Ex-director-geral da Saúde defende que as situações de ruptura no SNS podiam e deviam ter sido antecipadas. "Isto era previsível", diz

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Os peritos estão a estudar a reforma da rede de urgências do país PÚBLICO/Arquivo

À semelhança do que está a acontecer este ano, no Inverno de 2011/2012 houve um excesso de mortalidade (mais óbitos do que seria de esperar para essa altura do ano) associado às baixas temperaturas e à epidemia de gripe em Portugal. Não foi um exclusivo nacional, mas só em Portugal e em Espanha é que se observou um excesso de mortalidade nas faixas etárias entre os 15 e os 64 anos. Nos outros países apenas foram afectados os mais idosos. Esta conclusão consta de um trabalho sobre o impacto da crise em Portugal que só agora foi divulgado pelo Observatório Europeu de Políticas e Sistemas de Saúde.

"Nos primeiros meses de 2012, um excesso de mortalidade associado à gripe e ao frio foi reportado em Portugal, tal como em muitos outros países europeus em pessoas com mais de 65 anos. No entanto, um excesso de mortalidade nas faixas etárias entre os 15 e os 64 anos apenas ocorreu em Portugal e em Espanha”, lê-se no trabalho sobre O impacto da crise financeira no sistema de saúde e na saúde em Portugal .

Como se explica esta diferença entre países? “Portugal tem uma das mais baixas capacidades de aquecimento das casas durante o Inverno no conjunto dos países europeus, o que pode ter influência na mortalidade”, especulam os autores deste trabalho que só recentemente foi publicado no site do observatório europeu, apesar de estar concluído desde o Verão de 2013.

É  possível estabelecer um paralelo entre o que ocorreu em 2011/2012 e o excesso de mortalidade já verificado este Inverno (em três semanas morreram mais 1900 pessoas do que seria de esperar para esta altura do ano)? As autoridades têm dito que o excesso de mortalidade está a afectar basicamente as pessoas com mais de 75 anos. Mas só vai ser possível perceber-se o real impacto dentro de alguns meses, prevê um dos quatro especialistas que assina o estudo, o professor da Escola Nacional de Saúde Pública e ex-director geral da Saúde, Constantino Sakellarides, que olha sem surpresa para as situações de ruptura que se têm verificado em muitos serviços de urgência hospitalares desde o último Natal.

Sakellarides está mesmo convencido de que os casos de ruptura que agora tem sido noticiados eram antecipáveis, até porque ao frio e à gripe se juntou "o empobrecimento da população e um Serviço Nacional de Saúde [SNS] com menos recursos". “Era previsível", diz. "O que costuma acontecer [durante as crises ] é que se nota, primeiro, um efeito na saúde mental" mas, posteriormente, o impacto estende-se a outras áreas. “Esta é, aliás, a mensagem principal deste trabalho: não é sendo reactivos, escondendo a verdade, que se responde aos problemas. As condições do SNS estão cada vez piores, isto era previsível, não era preciso chegar o frio e a gripe para se perceber”, defende. 

Quando este trabalho (elaborado pelo Observatório Europeu e pela Organização Mundial de Saúde em seis dos países mais afectados pela crise) ficou concluído, já começavam a ser visíveis alguns efeitos das medidas de austeridade na saúde mental e também na procura dos serviços de saúde por parte de alguns grupos da população mais vulneráveis, recorda Sakellarides.

No estudo, os autores são mais comedidos. Tendo em conta os dados “limitados” disponíveis até meados de 2013, “parece ter havido um impacto negativo na saúde mental”, referem. Já os “previsíveis” impactos nas dependências de álcool e drogas e nas doenças agudas e crónicas são “mais difíceis de avaliar”, tal como os efeitos do empobrecimento, do aumento das taxas moderadoras, das dificuldades nos transportes de doentes e do desemprego, reconheciam. Seja como for, avisavam já nessa altura, os cortes salariais dos profissionais de saúde e as condições de trabalho deverão ter efeitos negativos.

O problema, sublinhavam, é que o programa de ajustamento  não levou em conta “os efeitos potenciais da austeridade na saúde”.  “Com melhor monitorização, os políticos poderiam ter definido medidas adequadas para minimizar efeitos negativos na saúde”, defendiam já, notando que uma atitude de “transparência” teria também permitido perceber o verdadeiro impacto da crise na saúde.

No concreto, explica agora ao PÚBLICO Constantino Sakellarides, o que foi possível apurar na altura foi “que houve um aumento de depressão e ansiedade”, como provaram “alguns inquéritos feitos nos cuidados de saúde primários”. Com dados da Unidade Local de Saúde do Alto Minho que comprovavam este fenómeno,  os autores do estudo tentaram, na altura, obter informação a nível nacional. “Não nos deram resposta”, lamenta Sakellarides. Percebeu-se, agora, no final de 2014,  que o fenómeno aconteceu em todas as regiões do país, diz. 

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