Governo quer saber se hospitais entregues às misericórdias servem interesse público

Executivo anula entrega de unidades de Santo Tirso e S. João da Madeira, que estava prevista para o início deste ano. Transferências já concretizadas em Serpa, Anadia e Fafe também vão ser avaliadas.

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União das Misericórdias Portuguesas e Ministério da Saúde debatem hoje o que vai acontecer aos contratos já assinados Adriano Miranda

Já não vai acontecer. O Ministério da Saúde anulou a passagem dos hospitais de Santo Tirso e de S. João da Madeira para a alçada das santas casas das misericórdias locais. Diz que o fez em nome do interesse público. A tutela quer agora avaliar também a “eventual mais-valia” dos acordos celebrados pelo anterior Executivo com as misericórdias de Serpa, Anadia e Fafe, que no ano passado passaram a gerir os hospitais das respectivas localidades.

A decisão de devolver as unidades hospitalares de Santo Tirso e S. João da Madeira, nacionalizados no pós-25 de Abril, às santas casas respectivas tinha sido tomada pelo Governo liderado por Passos Coelho. Tudo deveria acontecer no primeiro dia deste ano. Contudo, o actual ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, suspendeu o processo e, em Dezembro, pediu parecer ao Tribunal de Contas (TdC).

Agora, o TdC fez saber que os contratos de aquisição de serviços celebrados com instituições sem fins lucrativos que tenham por objecto os serviços de saúde estão, à luz da lei, isentos de visto. E Adalberto Campos Fernandes anunciou a sua decisão: “O Ministério da Saúde decidiu anular os despachos de homologação da celebração dos Acordos de Cooperação entre a Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. e as Santas Casas das Misericórdias de Santo Tirso e de S. João da Madeira.”

A decisão — que apanhou de surpresa as misericórdias — foi ponderada, “considerando que os estudos e o modelo económico-financeiro que estão na base dos Acordos de Cooperação suscitam fundadas dúvidas sobre a efectiva defesa do interesse público” e “considerando que os utentes, os profissionais de saúde e as autarquias têm evidenciado o seu desacordo relativamente a estes processos”, faz saber o Ministério da Saúde em comunicado.

Mas na autarquia de S. João da Madeira há críticas à decisão. Ricardo Figueiredo (eleito presidente da câmara nas autárquicas de 2013, renunciou ao mandato, estando marcadas para 24 deste mês novas eleições) considera “incompreensível” e “preocupante” a medida.

“No que diz respeito ao seu hospital, os sanjoanenses não têm tido razões para confiar no Estado, nomeadamente desde que encerrou a urgência e o nosso hospital foi colocado na dependência do Hospital de S. Sebastião”, diz Ricardo Figueiredo, actualmente presidente da Comissão Administrativa.

“O Estado tem desabilitado o hospital ao longo do tempo, e continuou muito recentemente, com a retirada de equipamentos, suspensão da marcação de consultas de Oftalmologia, supressão de utentes da Fisioterapia, encerramento da Consulta da Dor, anúncio da transferência da consulta de Psiquiatria...”

Já “o acordo com a Misericórdia de S. João da Madeira permitia inverter este ciclo negativo, através do acréscimo de especialidades e serviços, nomeadamente meios complementares de diagnóstico e terapêutica”, prossegue. Ia até “ser criada cirurgia de internamento e havia a possibilidade de se transformar a consulta aberta em serviço de urgência”. Sem acordo, diz, “o desmantelamento” poderá ser o destino da unidade hospitalar.

Questões em aberto
No seu comunicado, o ministério lembra ainda que os acordos que visavam a transferência dos dois hospitais “foram objecto de homologação pelo então Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, em 12 de Novembro de 2015, após a rejeição do Programa do XX Governo, de que era membro, a 10 de Novembro de 2015”. Sem que nada justificasse a pressa.

“O Ministério da Saúde e a União das Misericórdias Portuguesas irão proceder à avaliação dos acordos de cooperação efectuados anteriormente, através da Comissão de Acompanhamento prevista nos contratos, de forma a poder-se evidenciar a sua eventual mais-valia para o interesse público”, prossegue o Executivo. Contactado pelo PÚBLICO, Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias, diz que só se pronunciará depois de uma reunião que está previsto acontecer nesta quarta-feira no Ministério da Saúde.

Recorde-se que o anterior Governo iniciou um processo de devolução às misericórdias de alguns dos hospitais que depois de 1974 foram nacionalizados. Os primeiros três a serem transferidos foram os de Anadia, Serpa e Fafe. A transferência aconteceu no ano passado. Os acordos de cooperação celebrados implicavam a transferência de 7,1 milhões de euros por ano.

Previa-se que a 1 de Janeiro desde ano o mesmo tivesse acontecido com o de São João da Madeira (que integra o Centro Hospitalar do Entre Douro e Vouga) e o de Santo Tirso (Centro Hospitalar do Médio Ave). Não aconteceu.

Em Santo Tirso, o presidente da câmara Joaquim Couto congratula-se com a anulação do processo. “O SNS, nós sabemos como funciona. Já a misericórdia, disse que ia aumentar as valências, mas olhando para o acordo de cooperação o que se percebe é que haveria uma diminuição”, disse ao PÚBLICO.

O autarca lembra que a unidade hospitalar de Santo Tirso tem perdido serviços e doentes “que procuram o sector privado ou vão para o Porto”, que “muitos médicos e enfermeiros têm saído” e que “não havia nenhuma garantia que as coisas fossem melhorar com a misericórdia” a tomar conta dos destinos do hospital.

“A Câmara Municipal de Santo Tirso tem estado em diálogo permanente com o actual Ministério da Saúde, tendo tido conhecimento de que está a ser preparado um Plano de Acção para o Centro Hospitalar do Médio Ave que irá repor o equilíbrio de funcionamento do Hospital de Santo Tirso”, nota ainda o presidente em comunicado.

Já da Santa Casa de Santo Tirso há apenas um comentário. “A instituição foi apanhada de surpresa. Já fizemos um pedido de esclarecimento oficial”, diz Carla Medeiros, responsável pela comunicação.

“Cegueira ideológica”
“Acabou de ser escrita uma página negra na história da nossa terra”, reage, por seu lado, o provedor da misericórdia de S. João da Madeira, José António Pais Vieira. “Não há lógica nem razoabilidade na actual decisão do Ministério da Saúde.”

Crítico é também Pedro Mota Soares, ex-ministro da Solidariedade e Segurança Social. “É uma reversão errada, é uma reversão ineficiente e antiquada”, defendeu o deputado à Lusa. “Estes hospitais sempre foram das misericórdias, foi o Estado que os roubou quando os nacionalizou.”

Mota Soares, que no anterior Executivo foi um dos decisores da “política de contratualização” com o chamado sector social, anunciou que o CDS vai apresentar uma iniciativa legislativa para a manutenção dessa política, bem como promover uma audição pública com dirigentes e profissionais deste sector, na área da saúde e da educação. Sobre a decisão do ministro da Saúde considera que revela “uma cegueira ideológica”. E que não é eficiente. “É ineficiente porque as despesas em saúde feitas pelas misericórdias têm uma regra globalmente comprovada: conseguimos fazer mais serviço às pessoas a um custo mais em conta e, acima de tudo, ganha-se em humanismo o que se perde em burocracia.”

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