Director do SEF diz que lei de admissão de imigrantes é "falhanço rotundo"

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Manuel Jarmela Palos diz que é preciso uma pequena revolução na política de imigração no sentido de torná-la menos restritiva PÚBLICO

Portugal é o país da União Europeia com a política de admissão de imigrantes mais intransigente. Manuel Jarmela Palos, o primeiro inspector de carreira a chefiar o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), diz que se trata de uma tradição legislativa que já não faz sentido e quer que os trabalhadores estrangeiros possam ser legalizados com base nas disponibilidades do mercado de trabalho mas sem estarem obrigados a ter, previamente, um contrato de trabalho.

PÚBLICO - Quantos imigrantes ilegais estima existirem em Portugal?
MANUEL JARMELA PALOS -

Há uma questão de que eu me recuso sempre a falar, que é o número de imigrantes ilegais. Qualquer número carece de base científica.

Mas estão a decorrer dois processos para imigrantes ilegais em Portugal em que se registaram, no conjunto, perto de 80 mil pessoas.

Aquilo que me parece é que terá de haver uma reflexão muito importante relativamente à política de admissão de estrangeiros em Portugal. Esta é uma questão que está na ordem do dia na União Europeia. É preciso alterar a actual lei. O modelo das quotas que está em vigor é rigoroso e intransigente. Não me parece, e a realidade demonstra-o, que seja o modelo mais correcto.

Aquilo que poderia ter sido uma boa intenção esbarrou numa série de ineficácias de aplicação do próprio modelo. Nós ainda estamos com um modelo de relatório de oportunidades de trabalho [com base no qual são determinadas as quotas de entrada] feito há dois anos, que está completamente desajustado da realidade portuguesa.

É certo que os Estados devem ter uma noção da quantidade e da qualidade de imigrantes que devem admitir, porque a capacidade de integração não é ilimitada. Agora [há que] utilizar estes mecanismos como referência e nunca como métodos intransigentes, como aconteceu.

Por que é que a admissão por quotas não funciona?

Só pode vir um trabalhador para Portugal desde que esteja previamente estabelecido um vínculo laboral entre o empregador que vai contratá-lo e o trabalhador. Veja a dificuldade de um modelo deste tipo. Um cidadão que se encontra do outro lado do mundo vai trabalhar com alguém que nunca viu - alguém que, por sua vez, também não sabe das qualidades do trabalhador que contrata.

Este é o modelo mais restritivo da União Europeia?

Ao nível das quotas e da rigidez do sistema é o mais restritivo. Acresce que a própria lei não foi cumprida. Uma série de procedimentos que deveriam ser tomados simultaneamente, em pouco tempo, acabaram por não funcionar. O processo tornou-se também muito moroso por ineficiência dos serviços.

Faz também o "mea culpa", uma vez que participou na elaboração da lei, enquanto adjunto do director do SEF, na altura?

Não basta ter diplomas legais que nos satisfaçam. Caso fosse cumprida, esta lei era, mesmo assim, um avanço substancial relativamente ao que existia no passado. Ela estabelecia um prazo de 40 dias para o processo estar terminado. Agora não basta a garantia da própria lei mas a capacidade de exercício dessa lei. Houve uma alteração na lei, mas os serviços continuaram a funcionar como antigamente.

Mesmo assim não houve muita gente a ser prejudicada por esse atraso, uma vez que os candidatos foram muito poucos.

A quota era de 8500 pessoas e até agora só cento e poucas beneficiaram dela. Neste aspecto é um falhanço rotundo das políticas.

Qual é, então, a solução que propõe?

Deve dar-se um passo em frente. O que é importante, mesmo de acordo com estudos feitos pela União Europeia, é alterar-se significativamente esta ideia de que só se pode legalizar um trabalhador que já tenha um trabalho previamente definido. Havendo um estudo de mercado, um estudo das necessidades efectivas, os trabalhadores podem entrar em Portugal e uma vez aqui acedem eles próprios ao mercado.

Ou seja, o visto estaria ligado a um sector profissional e não a um empregador em particular.

Exactamente. E há outro problema que prejudica os imigrantes que se encontram em Portugal, comparativamente com os que estão noutros países da União Europeia. Nós temos uma diversidade muito grande de vistos. Acho que deveríamos atribuir sobretudo autorizações de residência, que permitam não só trabalhar em Portugal como circular noutros países da União Europeia.

Aliás, à semelhança do que acontece com os outros Estados-membros. Somos o único que tem esta barreira. Uma pessoa com um visto de estudante, não teria um visto de estudante, mas sim um visto de residência para estudar, que lhe permitisse fazer outros coisas, que não estudar, noutros países.

Uma pessoa com um visto de trabalho emitido em Portugal não pode circular noutro país da União Europeia, é isso?

Não. Teremos que dar passos nesta matéria.

Estas propostas já têm a concordância do Governo?

Não, falo enquanto pessoa que está ligada às questões da imigração.

Essa mudança não é crucial para o exercício do seu cargo?

Não é crucial. A minha prioridade, acordada com o Governo, é a reorganização dos serviços. A política de admissão de imigrantes é uma questão do Governo e do poder legislativo.

Mas já houve conversas nesse sentido?

Temos tido conversas ligadas à imigração e esta minha maneira de pensar é conhecida.

Por que é que Portugal é tão restritivo na entrada de imigrantes quando nem tem o poder de atracção de outros países, como a Grã-Bretanha ou a Alemanha ou a França?

Tem que ver com a nossa tradição legislativa. Talvez por preocupações securitárias que hoje já não fazem sentido. Se formos à legislação de 1993, não houve grande alteração da filosofia de base até hoje. A única via de aceder à legalização era através de um visto concedido no consulado, no país de origem. Tentou-se uma flexibilização, mas não houve uma ruptura. Eu entendo que uma forma de combatermos a imigração ilegal é agilizarmos a imigração legal.

Não acredita portanto na eficácia no controlo de fronteiras para deter os imigrantes ilegais?

O controlo de fronteiras é fundamental. Mas o controlo dos fluxos tem de ser feito a vários níveis. A imigração legal diminui a necessidade de se entrar ilegalmente.

E a existência de empregadores que contratam imigrantes ilegais. Não são eles que alimentam também esse fluxo?

Essa é outra questão fundamental e é prioritária para mim. A lei criou já mecanismos importantes, focalizando a repressão já não no trabalhador mas no empregador. Mas, mais uma vez, a intenção, na prática, não tem consequências.

E porquê?

Há coisas que eu próprio não consigo compreender. Para mim foi uma surpresa saber isso.

Por falta de meios?

Não tanto por aí. Temos feito várias acções de fiscalização. O que me parece é que terá de haver aqui alguma especialização dos inspectores do SEF e definição de prioridades. Saber onde devemos atacar.

A que é que se refere em particular?

Por exemplo, a lei prevê o pagamento, por parte dos empregadores, não só da coima por emprego ilegal mas também das despesas com a expulsão do imigrante. Até este momento, não me pergunte porquê, este mecanismo nunca foi aplicado. Está agora em elaboração uma norma de procedimento, que vamos começar a aplicar dentro de dias, em que vamos actuar fortemente nesta perspectiva. Isto é toda uma mudança na filosofia das próprias acções.

Afastámos centenas de imigrantes a trabalhar ilegalmente. O Estado deveria ter sido ressarcido e não foi. A partir de agora, quem prevaricar não será sancionado com uma mera coima, que poderia ser vantajosa para o próprio empregador, mas arcará com as despesas com a viagem, estadia ou, se necessário, com a escolta do cidadão até ao seu país de origem.

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