Coreia do Norte: o país é um mistério, o seu futebol não

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O guarda-redes norte-coreano da selecção de 1966, Lee Chang Myung DR

Pela primeira vez o Mundial de Futebol vai ter lugar no continente africano. E Portugal está na fase final. Por isso, no domingo, a Pública é dedicada a esta competição que começa no dia 11 de Junho. Portugal estreia-se a 15, frente à Costa do Marfim; Coreia do Norte e Brasil são os outros adversários da primeira fase. Fomos à Covilhã ouvir os sonhos dos rapazes que calçam as chuteiras de Portugal; reportagem de Hugo Daniel Sousa e Paulo Ricca. Na África do Sul pós-"apartheid" vimos que existe verdade mas falta reconciliação; reportagem de Alexandra Lucas Coelho e Pedro Cunha. Contamos a história de Didier Drogba, o carismático líder da selecção da Costa do Marfim. No estádio mais mítico do mundo, o Maracanã, no Rio de Janeiro, testemunhámos o que é a torcida brasileira. Oferecemos um poster com os 24 jogadores convocados por Carlos Queiroz e um calendário para seguir os jogos.

Coreia do Norte: o país é um mistério, o seu futebol não

Quando a selecção da Coreia do Norte participou no Mundial de futebol em 1966 não tinha adeptos, mas foi adoptada de forma incondicional pela população de Middlesbrough, que os acompanhou até Liverpool para o jogo dos quartos-de-final em que perderam com Portugal. Mais de 40 anos depois, a equipa norte-coreana volta a estar num Mundial (será a segunda vez), mas não está a contar com o apoio espontâneo dos locais. Nem com o apoio presencial dos seus adeptos. O Governo de Pyongyang comprou mil bilhetes para formar um “exército voluntário de adeptos” composto por chineses para mostrar nos estádios sul-africanos as bandeiras da República Democrática Popular da Coreia.


Na verdade, não serão muitos os norte-coreanos, tirando a comitiva oficial e algumas elites, que estarão nos jogos. A esmagadora maioria dos coreanos que vive acima do paralelo 38 não está autorizada a sair do país e, mesmo que estivesse, provavelmente não teria condições económicas para o fazer. Assim, os norte-coreanos estão resignados a seguir à distância a carreira dos “cholima” (é a alcunha da selecção, que é o nome de um cavalo alado mitológico), mas também não é garantido que tenham acesso às transmissões televisivas em directo dos jogos do Mundial. A estação televisiva da Coreia do Sul que detém os direitos de transmissão não vai ceder o sinal à Coreia do Norte devido às suspeitas de que o regime de Kim Jong-Il terá afundado um navio sul-coreano.

A Coreia do Norte, 106.ª colocada no ranking FIFA (a pior entre as 32 selecções que estão no Mundial), pode até ser campeã do mundo de futebol sem que nenhum norte-coreano em território nacional esteja a ver. “É o desporto número 1 na Coreia, sempre foi. Acho que vão ver todos os jogos, mas penso que não os irão ver ao vivo”, diz à Pública Nick Bonner, um britânico que gere a Koryo Tours, uma agência baseada em Pequim e especializada em viagens para a Coreia do Norte. Bonner garante ter lá ido, pelo menos, uma vez por mês desde 1993, ano em que começou a organizar as viagens para um dos países mais fechados do mundo.

Na verdade, os norte-coreanos têm um acesso regular a jogos das ligas europeias e sul-americanas. A televisão, controlada pelo Estado (tal como todos os outros media), transmite semanalmente jogos de várias ligas mundiais. “As transmissões são aos domingos. As ruas até estão mais sossegadas na altura em que está a dar futebol na televisão”, conta o britânico.

Os norte-coreanos qualificaram-se às custas da Arábia Saudita, orientada pelo português José Peseiro, no play-off final. Segundo alguns relatos da imprensa internacional, os norte-coreanos nem sequer viram o decisivo jogo da segunda-mão em directo — só na noite seguinte, em diferido, é que terão assistido à histórica qualificação. Nick Bonner não confirma esta versão, mas revela que os norte-coreanos viram todos os jogos do Mundial 2006, por cortesia dos seus vizinhos da península, e observa que, se as relações com a Coreia do Sul se mantiverem tensas, sempre podem pedir o sinal emprestado à China.

O contacto regular com as autoridades norte-coreanas para a organização das excursões facilitou a Bonner e Daniel Gordon, realizador britânico, investigarem uma das mais fascinantes histórias do futebol do século XX: o que realmente acontecera à equipa de 1966. Durante anos, nada se soube e circulavam rumores de que teriam sido castigados por terem participado em festas com muito álcool e mulheres após o jogo com Portugal nos quartos-de-final. A lenda era que haviam sido presos, torturados, alguns mesmo mortos, outros enviados para campos de trabalho.

Depois de vários anos a tentar, Bonner recebeu um fax, em 2001, de Pyongyang a dar autorização para irem ao país entrevistar os sobreviventes daquela misteriosa equipa. “Depois de fazermos o documentário, até conhecemos mais jogadores”, recorda Bonner. E assim o mundo ficou a saber os destinos do elástico guarda-redes Lee Chang Myung, do avançado Pak Sung-Jin ou de Pak-Doo-Ik, o homem que marcou o golo da eliminação da selecção italiana.

Os dois britânicos não só reuniram os sobreviventes (aparecem oito no filme, mais o treinador), como promoveram o regresso de todos a Middlesbrough. E todos os que aparecem no filme estão ou envolvidos no desporto, ou fazem parte do exército. Não há, no entanto, um único momento em que não apareçam com dezenas de medalhas ao peito.

Os amigos de Middlesbrough

A qualificação norte-coreana para o Mundial de Inglaterra já é, em si, uma história. Na altura, para além das selecções europeias e sul-americanas, havia apenas um lugar na fase final para três continentes: África, Ásia e Oceânia. As equipas africanas retiraram-se todas da qualificação, como forma de protesto pela distribuição das vagas, tal como a Coreia do Sul. Restaram Austrália e Coreia do Norte para lutar pela vaga.


Como os australianos não reconheciam a Coreia do Norte, o confronto teve de ocorrer em campo neutro, em Phnom Pehn, no Camboja. A selecção australiana estava confiante em vitórias fáceis nos dois encontros e levaram a preparação pouco a sério. Para os coreanos, era uma oportunidade única e isso mostrou-se nos resultados: 6-1 na primeira mão, 3-1 na segunda. Seria a primeira vez (e única, até 2010) que os coreanos chegavam a uma fase final de um Mundial, enquanto os australianos teriam de esperar até 1974 para lá chegar.

O estatuto internacional da Coreia do Norte não ajudava em nada a vida da sua selecção de futebol. O regime comunista de Kim Il-Sung não tinha relações diplomáticas com a Inglaterra e a guerra da Coreia pertencia ainda a um passado muito recente. Como condição para poderem entrar no país, os norte-coreanos abdicaram, por exemplo, de terem o seu hino tocado antes do início dos jogos, que seriam, por esta ordem, União Soviética, Chile e Itália.

Apesar de serem de um país fechado e longínquo, os norte-coreanos foram calorosamente acolhidos em Middlesbrough, a cidade que seria a sua base na fase de grupos, uma cidade industrial do Nordeste de Inglaterra. “Jogavam bom futebol — sabem, eram pequenos e uma novidade. Jogavam futebol de ataque e isto apanhou as pessoas de surpresa. Não tinham nada de defensivo e por isso as pessoas começaram a apoiá-los”, conta no documentário Dennis Barry, morador da cidade.

Contra a União Soviética, os coreanos estrearam-se com uma derrota por 3-0 e o empate (1-1) que se seguiu com o Chile tinha sabor a eliminação do torneio, já que o adversário seguinte seria a poderosa Itália. Mas os italianos, que à data já tinham conquistado dois mundiais (1934 e 1938), não contaram com a organização e espírito de sacrifício dos seus pouco cotados adversários. Depois de Pak Doo-Ik marcar o golo, a “squadra azzurra” carregou e teve muitas oportunidades de dar a volta, mas os jogadores foram perdendo a confiança e o discernimento, e acabou por ser a selecção asiática a festejar juntamente com os seus amigos de Middlesbrough.

Seguiu-se a selecção portuguesa, também ela com uma carreira de tomba-gigantes no torneio, deixando de fora o Brasil de Pelé. De Middlesbrough, os norte-coreanos foram para Liverpool e levaram atrás de si três mil adeptos da cidade que os acolhera. Na terra dos Beatles, não tinham alojamento marcado e foram obrigados a ficar nos quartos reservados pelos italianos numa residência de padres.

Os “baixinhos com as caras iguais”, como disse José Augusto, um dos membros da equipa portuguesa, começaram por surpreender os “Magriços” de forma bastante afirmativa, colocando-se a vencer por 3-0. Mas Portugal tinha Eusébio, um dos melhores avançados do mundo, que, quase sozinho, destruiu os asiáticos, marcando quatro golos na partida dos quartos-de-final que terminaria em 5-3 para Portugal.

Até ao Mundial 2002, organizado pela Coreia do Sul e pelo Japão, nenhuma equipa asiática fez melhor que eles na fase final de um Mundial. Nesse torneio, os sul-coreanos conseguiram chegar às meias-finais eliminando, sucessivamente, a Itália e a Espanha. Pelo menos numa coisa a Coreia do Sul imitou a selecção de 66 que representava um país com o qual nunca deixou de, formalmente, estar em guerra: eram a selecção fisicamente mais bem preparada para jogar no clima húmido da Ásia ocidental.

Atlético Sorocaba do Brasil

Ao contrário da sua selecção feminina, que é a segunda melhor da Ásia e uma das melhores do mundo (sexta no ranking FIFA; a equipa portuguesa está no 41.º lugar), a selecção masculina tem pouca visibilidade internacional, para além dos jogos internacionais e de poucos jogadores que actuam no estrangeiro — dos 23 que vão estar na África do Sul, dois jogam no Japão e um na Rússia. Das competições internas, pouco se sabe para além do nome das equipas e do que é descrito no filme de Gordon e Bonner. Sabe-se, por exemplo, que uma das potências do futebol norte-coreano é o 25 de Abril.


As excursões que Bonner promove também permitem algum contacto da Coreia do Norte com equipas estrangeiras, mas são, na sua grande maioria, equipas femininas que o inglês leva ao país. Em Novembro passado, já depois de garantida a qualificação para o Mundial, a selecção norte-coreana defrontou uma equipa brasileira em Pyongyang, mas não foi nem a selecção do Brasil, nem nenhuma das equipas de topo, como o Flamengo ou o Corinthians.

Quem representou o futebol brasileiro foi o Atlético Sorocaba, da segunda divisão estadual de São Paulo, apresentado no placard do estádio como Brasil e com equipamentos amarelos. Como foi parar uma obscura equipa com pouca história ao país eremita? Devido às relações com uma universidade norte-coreana de Tóquio e ao facto de o clube ser propriedade da Igreja da Unificação do reverendo Sun Myung Moon, um coreano nascido da zona norte da península.

“Eles queriam conhecer melhor o futebol brasileiro”, recorda à Pública Valdir Cipriani, na altura e agora vice-presidente do clube paulista. Nunca os homens do Atlético tinham jogado perante tanta gente — 80 mil espectadores no estádio Kim Il-Sung, e ficaram mais 30 mil fora do recinto — e, para todos os efeitos, era como se fosse a selecção do Brasil, o que terá motivado uma táctica cautelosa por parte do seleccionador da casa, Kim Jong-Hun.

“Tecnicamente, da parte deles, foi um jogo muito na retranca. Tinham cinco zagueiros [defesas], três volantes [médios], um armador de jogo e um avançado sozinho lá na frente. Não estavam muito entrosados e tinham uma pontaria muito ruim. Nós éramos um pequeno clube de São Paulo e o que pensávamos era não perder por muitos”, conta Cipriani, que viveu durante dois anos na Coreia do Sul. O jogo acabou num empate sem golos. “Eles respeitaram-nos de mais”, observa o dirigente do clube paulista, que recorda ainda outro momento em que o treinador ficou de mão estendida quando tentou cumprimentar o seleccionador norte-coreano antes do jogo — cumprimentaram-se depois do jogo. Nos jornais do dia seguinte, acrescenta Cipriani, nem uma palavra sobre a partida.

A propaganda

No documentário de Bonner e Gordon, os jogadores recordavam um encontro com Kim Il-Sung que, dizem, os inspirou para os feitos em 1966. O filme mostra, inclusive, um momento em que os sobreviventes dessa equipa são levados até uma grande estátua do “presidente eterno” e quase todos começam a chorar. Para o Mundial 2010, todas as poucas declarações públicas de jogadores e treinadores da Coreia do Norte falam do “Querido Líder” como uma fonte de inspiração.


A propaganda difundida no país pelo Governo de Pyongyang reforça este sentimento. “O que aconteceu este ano prova, mais uma vez, que a liderança experiente do secretário-geral Kim Jong-Il e a sua grande devoção patriótica são a fonte de todas as vitórias, milagres e força inesgotável”, lia-se numa nota publicada pela agência de notícias norte-coreana.

A máquina de propaganda funciona, essencialmente, para o interior. O sucesso na manutenção do regime está na sua capacidade de controlar a informação que chega aos cidadãos, que apenas recebem dados fornecidos pelo Estado e não têm acesso à Internet. E o futebol também serve para passar a mensagem. Por exemplo, durante a qualificação asiática, após um confronto entre as duas Coreias na China, a federação norte-coreana acusou a sua contraparte de Seul de ter envenenado os seus jogadores. “Os principais jogadores da República Democrática Popular da Coreia não se conseguiam levantar por causa de vótimos, diarreia e dores de cabeça. […] Pode ser dito, sem qualquer dúvida, que tal foi provocado por um acto deliberado de adulteração dos alimentos”, dizia, em comunicado, a federação norte-coreana, que acusava ainda o árbitro de “trabalho seriamente tendencioso”.

Mas os norte-coreanos são realistas sobre as possibilidades do seu futebol contra potências como o Brasil, Portugal e Costa do Marfim, os seus adversários da primeira fase — o Brasil será o primeiro adversário, a 15 de Junho. Ainda assim, esperam emular os feitos dos heróis de 1966. “Depois de derrotar as probabilidades com a nossa qualificação, queremos espantar o mundo do futebol”, diz Jong Tae-Se, avançado dos japoneses do Kawasaki Frontale.

Jong é um dos poucos jogadores conhecidos da equipa norte-coreana, um avançado de 26 anos forte, a quem chamam o Wayne Rooney da Ásia, por a sua entrega ao jogo ser semelhante à do jogador do Manchester United. Jong nasceu no Japão e diz-se que tem origens norte-coreanas, emboram outras fontes digam que os seus pais são da Coreia do Sul — parece, no entanto, certo que tenha estudado num colégio norte-coreano em Tóquio.

O estilo de jogo dos norte-coreanos do presente contrasta bastante com o espírito ofensivo dos seus antecessores. Jogam apenas com um avançado e utilizam um superdefensivo sistema com cinco defesas. Tal táctica valeu-lhes, no entanto, terem sofrido apenas dois golos na fase de apuramento. “Jogamos um futebol feito de velocidade e boa técnica, de acordo com os padrões do futebol moderno, que incluem grande resistência física. O nosso espírito é um factor de união entre os jogadores. Apesar de a tendência global ser um futebol mais de ataque, o nosso estilo defensivo é o que melhor se adapta aos nossos jogadores”, reconhece o seleccionador norte-coreano.

Nick Bonner acredita que ninguém tem mais a provar ao mundo que a Coreia do Norte e que, só isso, pode reduzir a diferença para os adversários mais poderosos: “Todos vão jogar a 100 por cento, a Coreia do Norte vai jogar a 110 por cento. Estão nos lugares de baixo da hierarquia e vão jogar por um país que é pária. Espero que o futebol seja mais forte que a política.”

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