Acreditar na Justiça

A Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelecem há muito a proibição da tortura e penas ou tratamentos desumanos ou degradantes. A Amnistia Internacional denuncia sistematicamente violações constantes desses princípios e correlativos direitos universais. Assistimos atónitos a assassinatos transmitidos pelas estações televisivas.

 As penas criminais executavam-se no corpo dos condenados, com as mais diversas sevícias e torturas. A nova justificação política do direito de punir, com pouco mais de dois séculos, transpôs a punição do corpo para a liberdade. O condenado é punido na sua alma. 

 Tratar os presos com dignidade, como seres humanos, é ainda uma grave questão política. Há um trabalho muito longo a levar a efeito. As violações à integridade e dignidade humanas dos presos não são tão raras quanto isso. Com as limitações do mundo prisional, devem respeitar-se os direitos fundamentais do detido ou preso. A sua integridade física e moral. Também isso caracteriza e põe à prova o Estado Democrático e de Direito. O distingue do totalitarismo. Os estabelecimentos prisionais não são ilhas herméticas dentro de um estado qualquer. Integram o Estado de Direito.

Sob proposta do Ministério Público, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) produziu, há poucos dias, um relevante acórdão sobre essa matéria. Um ensinamento.

Num estabelecimento prisional do Norte do país, há um preso incumpridor. Rebelde. Relapso à disciplina prisional. Tudo lhe serve para afrontar a autoridade prisional. Recusa-se a proceder à limpeza da cela. Nesta despeja tudo. Deposita na cela um cheiro nauseabundo que se estende por toda a ala onde está. Os restantes presos ameaçam com greve da fome. A guarda já não sabe o que fazer. Compreensivelmente, perde a paciência. A hierarquia superior do sistema prisional transmite instruções muito concretas. No sentido de que a guarda instrua o preso de que deve limpar a cela. Que o retire de lá e a limpe se o preso o não fizer. Que use a “força” da arma “Taser” em última instância. Se o preso for violento. O preso cumpre todas as ordens da guarda.

Não cede a limpar a cela. O grupo de intervenção usa A “Taser” sem que o preso use de violência. Sofre uma descarga eléctrica por todo o corpo durante cerca de nove minutos.

As situações difíceis e melindrosas não podem ser encaradas com facilitismos. Tornar-nos indulgentes com a musculação desproporcional e exagerada das forças de segurança. A afronta irracional do preso à ordem jurídica gera uma “solidariedade emocional” com a irracionalidade da reacção da autoridade.

Os guardas do estabelecimento prisional confrontaram-se com uma situação de muito difícil gestão. Há um trabalho regular e constante a empreender na formação profissional dos agentes policiais. Não só física, mas psicológica e até jurídica. Que os habilite a tratar com eficiência casos difíceis sem recurso desnecessário à violência.

 O uso da “Taser” foi desproporcional e exagerado. Não respeitaram até onde era possível a integridade física do preso. Nem o estatuto de homem preso/indefeso. Impuseram-se pela “razão” da força.

 Seria fácil absolvê-los, com este ou aquele argumento jurídico. Os juristas têm sempre mais um argumento no bolso. O Tribunal da Relação do Porto soube estar acima do populismo e fazer Justiça. Condenou-os por um crime de coacção na pena de prisão de oito meses com execução suspensa por um ano.

 Os guardas condenados não acreditam na Justiça.

Procurador-geral adjunto

Sugerir correcção
Comentar