A 90 km/h não há trânsito

— Então, como estão a correr as novas velocidades? — perguntei ao motorista. Questão tola, pois se há coisa que as novas normas rodoviárias da metrópole impedem é qualquer tipo de correria.

— Olha aqui como está a correr — ele respondeu, empunhando três papéis que tinha sobre o tabliê. Eram multas de trânsito. — Eles só querem é arrecadar dinheiro — completou, com grande originalidade de pensamento.

Na cidade de São Paulo, com onze milhões de habitantes, a polémica está à solta neste capítulo. Preocupado com os acidentes, o prefeito decretou marcha lenta nas principais artérias da cidade. Nas marginais dos odoríficos rios Tietê e Pinheiros, que chegam a ter dez ou mais faixas de rodagem em cada sentido, o máximo permitido é de 50 km/h nas vias mais afastadas da água. Nas mais próximas, pode-se ir um pouco mais rápido, 70 km/h, por questões nasais. Em muitas outras grandes avenidas, o limite também baixou para 50 km/h.

Mal entrou em vigor a medida, instalou-se a gritaria. Tocar no automóvel — este ícone da modernidade antiga — é como mexer num ninho de vespas. Há sempre zangões enfurecidos. O próprio Ministério Público abriu um inquérito, não se sabe bem por que razão, e a Ordem dos Advogados do Brasil promete ir aos tribunais, considerando que as restrições de velocidade comprometem o patrocínio jurídico. É o que suponho mas não compreendo. Como normalmente cobram à hora, os nobres causídicos não estão bem a ver os benefícios de andar mais devagar.

— É um absurdo — disse o motorista. — E olha como está o trânsito.

Não estava nada bom, como é natural numa urbe com oito milhões de automóveis. O limite era cinquenta, mas a realidade era infinitamente menor: zero. Tudo parado.  

Abri a janela e o ar estava espesso como petróleo. Inalei calor, humidade, partículas e demais contaminantes aéreos, um almoço químico completo. Dizem os especialistas que um automóvel polui mais quando anda ou muito lentamente ou muito rápido. A maior eficiência atinge-se precisamente com velocidades entre os 50 e 70 km/h. O motor digere pouco combustível por quilómetro rodado e o tubo de escape evacua menos dióxido de carbono, óxidos de azoto e outros gases de nomes indizíveis, como os compostos orgânicos voláteis não-metálicos, que só de ouvir entalam-se na garganta.

Num mundo perfeito — que, se um dia existir, será de um aborrecimento total —, os automóveis deveriam estar equipados com um chip que automaticamente limitasse a sua velocidade máxima, conforme a rua ou estrada. Podem carregar a fundo no acelerador que nada acontece além do regulamentado.

Mas é melhor não falar muito alto sobre isso. Se a ideia chega aos ouvidos da Volkswagen, os engenheiros alemães começarão logo a trabalhar numa forma de contornar a coisa.

Além disso, a gritaria se transformará em rebelião. Além dos advogados, antevejo outras ordens profissionais a mover as suas massas corporativas, dos electricistas aos técnicos oficiais de contas, dos professores de natação aos psicólogos de cães e gatos, das cabeleireiras aos especialistas em física de partículas. Todos unidos na defesa das liberdades dos automobilistas e respectivos veículos. O direito de ir e vir, como sabemos, é inalienável.

— Está vendo como isso está? — repetiu o motorista. — Se a gente pudesse andar a 90, como antes, não estava tudo parado.

— Pois é — anuí, desistindo do tema e da corrida. — O senhor pode me deixar aqui, que eu vou a pé.

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