Memórias do nosso passado recente

“No princípio fui espancado, mas não muito espancado...”

“Sim, eles fizeram-me uma coisa que, tanto quanto sei, só fizeram a mulheres, que é escarrar-lhes para cima. Encostaram-me a uma parede e, como quem faz tiro ao alvo, eles fizeram escarro ao alvo. (...) Desde que entrei nessa quarta-feira, 22, eu já não dormi mais. Entrei na tortura do sono e fui logo vítima dos escarros. Depois, um deles agarrava-me pela cintura e, como eu era muito magrinha e muito pequenina, eles punham-se um em frente do outro e jogavam-me como uma bola, pelo ar. E isto já depois de eu estar sem dormir, que é uma coisa que tira o equilíbrio todo, mais ainda. (...) Há uma altura, já muitos dias depois, não sei em que dia foi, mas penso que terá sido depois do oitavo, começaram a avisar-me, uns quatro dias antes, de que vinham os índios, que arrancavam as unhas. Que arrancavam os cabelos. E foi aí que tive a sensação de pânico e vómitos. Eu tinha náuseas, sentia-me tão mal à espera dos índios, a 'brigada dos índios'. Eu ainda hoje não sei se era índio porque arrancava o escalpe ou se porque aquele indivíduo tinha um ar, de certo modo, índio. E esse indivíduo, que não tinha até aí aparecido em lado nenhum, pelos vistos mudou a brigada, foi lá fazer aquilo. Começou a bater. (...) Há aqui um músculo, ou tendão que dói imenso. Ainda hoje sinto, já fiz exames, não tenho nada mas sinto dores. Ele batia com uma matraca e com os joelhos. Até penso que ele teria alguma coisa nos joelhos, alguma protecção para bater, para fazer aquilo. Bateu, bateu, bateu e eu lembro-me só de pensar 'isto vai acabar'. E acabou, mas não foi porque ele quisesse. Entraram dois indivíduos na cela, agarraram-no e levaram-no para fora da cela. E eu senti uma coisa na barriga, no estômago, não sei explicar. Não sabia se aquilo era vontade de ir à casa de banho ou não, mas parecia. Fui à casa de banho e sentei-me na sanita e já não saí pelo meu pé. Aquilo que eu tinha era uma hemorragia. E depois levaram-me, já em braços.”

“A Maria era alentejana e tinha um menino pequeno. Um menino aí com um ano e meio. Numa cela onde era suposto estar uma pessoa, quando muito duas, estávamos três e uma criança com aquela idade. Era horrível. A mãe não ia ao recreio, a criança não ia ao recreio, não tinha nenhuma comida especial, comia aquilo que nós comíamos, porque em isolamento não deixavam entrar nada de comidas. Ainda por cima, sendo a mãe do Alentejo, não tinha sequer visitas. E era horrível porque o menino estava já num profundo desequilíbrio psicológico. Ele literalmente emaranhava pela parede acima. Corria de uma ponta da cela, vá lá, três metros, para a outra ponta e subia a parede. Subia e deixava-se cair. E gritava o dia todo, era uma coisa terrível. Só depois de muito fazer isto e bater com a cabeça é que adormecia ao colo da mãe. De desgaste, de cansaço. Eu, a dada altura, protestei por causa da situação e, pura e simplesmente, tiraram-me para a cela ao lado. Em vez de terem resolvido o problema da criança, que era a razão pela qual eu protestara, tiraram-me para uma cela ao lado, onde voltei a estar sozinha”.

“Pronunciar 'António Maria Cardoso' é uma coisa que mexe comigo. Para mim, António Maria Cardoso e sinónimo de martírio. E mais martírio é aquele terceiro andar... aquele terceiro andar é qualquer coisa de horroroso. Eles próprios diziam: 'Aqui, a lei não entra'. (...) Na tortura do sono, começam por aparecer as alucinações. Quer auditivas, quer visuais. Os nós da madeira no chão transformavam-se em bichos, em baratas; nas paredes que tinham rachas ou defeitos, apareciam lagartos e outros bichos do mesmo género, espécies de répteis. (...) Eu deitava-me na cama e não conseguia ficar na cama. Não conseguia, não conseguia, tinha de me levantar, sentia que – é uma coisa incrível como me lembro! – havia bolas de naftalina que me corriam pelo corpo, entravam-me pela boca e eu tinha de me levantar”.

“Espancamentos, socos, pontapés, puxões de orelhas, de nariz, cabelos, empurrões contra a parede, sovas com cavalo-marinho, que é uma tira comprida, e a tortura do sono. Muitas vezes falamos do espancamento como uma coisa violenta, mas a tortura do sono é diabólica. Muitas vezes ao fim de três, quatro, cinco noites, a pessoa estar ali de pé, sem dormir... É um estado de loucura insuportável. (...) Acho que se houvesse janelas abertas nas salas onde nos estavam a interrogar ou um poço, a certa altura nós tínhamos feito isso. Não sei se num dia qualquer não me deitava janela fora. Acho que não devia dizer isto, porque é um acto de cobardia, mas eu faria isso”.

(Excertos de testemunhos do livro No Limite da Dor – A Tortura nas Prisões da PIDE, coordenado por Ana Aranha e Carlos Ademar, Edições Parsifal)

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