Gato por lebre

Hoje em dia, as políticas da justiça, tal como em qualquer outra área sectorial, estão cada vez mais sujeitas a dois tipos de escrutínio: um escrutínio interno dos partidos da oposição, dos vários stakeholders (Ordens, sindicatos, associações), da comunicação social, da sociedade civil e dos cidadãos em geral; e um escrutínio externo, através de processos de avaliação por pares, instâncias e credores internacionais.

Os governos e as autoridades públicas estão cada vez mais pressionados a encontrar maneiras de avaliar os resultados conseguidos através de indicadores de desempenho mensuráveis e comparáveis no espaço e no tempo.

A monitorização e avaliação de resultados ganha relevância à medida que as políticas se vão complexificando e que os níveis de literacia dos cidadãos aumentam, exigindo um saber técnico e uma fundamentação especializada mais cuidada das opções tomadas. Se a capacidade de admitir publicamente o insucesso das políticas continua a exigir uma verticalidade por parte dos decisores que ainda escasseia, já as explicações simplistas sobre os alegados sucessos tornaram-se insuficientes. Nem o povo é estúpido, nem os avaliadores externos andam a dormir.

Nos últimos dias, a comunicação social tem mostrado o que de melhor e pior pode fazer em matéria de acompanhamento das políticas públicas. Como denunciara uma vez Mark Twain, “Se um indivíduo não lê o jornal, fica ignorante; se o lê, fica mal informado.” Em democracia, a escolha entre ignorância e desinformação pende para a segunda sempre que for possível a pluralidade de posições e que o cidadão entenda que aquilo que se lê, vê ou ouve é apenas uma de várias representações possíveis da realidade. A fiabilidade da informação publicitada sobre factos de corrupção dependerá em muito do pluralismo de emissores e da capacidade cognitiva dos receptores.

O problema é que em matérias de justiça, e sobretudo no que concerne o combate à corrupção, nem o entendimento das pessoas é consistente, nem o pluralismo de informação se faz sempre sentir: vezes sem conta, os jornais replicam as baboseiras que as autoridades lhes impingem. O “balanço” recentemente publicado pelo Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC) sobre a evolução do volume de processos de corrupção e criminalidade conexa de 2008 a 2013 é disso exemplo.

O dito relatório foi objecto de ampla difusão mediática. Porém, poucos foram os jornalistas que se deram ao trabalho de verificar se “a bota batia com a perdigota”, como se diz na gíria. Não só o documento não explicita as fontes de informação utilizadas, como apresenta um conjunto de “conclusões”, que para além de serem contraintuitivas, não têm qualquer base de sustento empírico. Bastaria uma leitura cruzada com os dados oficiais que constam do Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça (SIEJ), para perceber que a informação prestada não é fidedigna e a sua leitura acaba por ser enganosa. Mas para o presidente do CPC, cumulativamente presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d'Oliveira Martins, essas “limitações dos dados”, são um mal menor, porque as conclusões extraídas acabam por ter bastante utilidade.

E que utilidade é esta? Justificar a existência de um organismo inócuo, ora pois! Sempre que o CPC não tem mais nada para dizer (ou quando não sabe o que dizer) manda cá para fora uns "dados" e mesmo que estes não tenham rigor, deixarão seguramente os jornalistas mais incautos a comentá-los durante alguns dias. O que é que isto acrescenta à eficácia da prevenção e combate à corrupção? Nada. Que lições daqui se tiram para reforçar esse combate? Nenhuma.

No fundo, não se trata de avaliar e melhorar políticas públicas. Trata-se apenas de “mostrar serviço”. Não é por isso de estranhar que o mesmo relatório apresente também um “balanço” da “evolução do número de notícias publicadas pela comunicação social relativamente ao CPC”. É no fundo isso que lhes interessa. Só é tolo quem quer...

Politólogo, Universidade de Aveiro

 
 

   





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