Domingo no quintal

1. Veio o sol, mudou tudo, luz na cal, novos rebentos, pó de ouro nos potes de guardar a chuva. Podemos despir a camisola, deixar a porta da cozinha aberta. Alentejo: um quintal, dois cães, um rapaz a colher caracóis enquanto não chega às laranjas. O quintal é um rectângulo, o último quadrado é meu. 

2. Estávamos à espera de domingo para lavar a roupa, a electricidade é mais barata e ia parar de chover. Falo no plural porque somos duas casas, a grande e a minha. Um pouco como eu vivia no Cosme Velho, no Rio de Janeiro, só que aí a casa grande estava por cima e o quintal era uma selva. Para ver a copa das árvores, eu tinha de deitar o queixo para trás. Aqui as copas começam no queixo.

3. Subo com a roupa ao terraço de onde se avista o castelo para Norte, o casario para Sul, bandeira branca depois de todas as guerras. O coração é o músculo mais forte, dou graças. É a hora da sesta, o chão queima, cheira a quando os lençóis coravam por cima das ervas. De vez em quando há um eco de alentejano aqui e ali, mas o som mais alto é sempre o sino, seguido do galo (porque os galos passam a vida nisto, não só de manhã). E é no terraço que está a chaminé de onde até ontem saía o fumo da minha salamandra.

4. O Nuno, que é o pai do Vasco, prepara sementes. O Vasco é o rapaz dos caracóis, tem de os colher para eles não comerem as couves. Quando se acabam vamos ao caixote de livros que está dentro da lareira (que já não é lareira porque foi substituída pela salamandra) desencantar um livro infantil escrito por uma amiga. O Vasco leva-o para o quintal mas inventa outra coisa melhor para fazer. Quando vou estender mais roupa, sobe comigo e diz-me que vai ter um irmão chamado Pedro. Eu digo que tenho um irmão chamado Pedro. Ele diz que uma bactéria disse ao irmão na barriga da mãe que o Vasco não é bom. Eu digo que não pode ser porque as bactérias não têm boca. Parece que estamos num conto do Salinger.

6. Lavo a roupa de lavar à mão junto às casotas da Zazu e do Zuca. Esta parte também lembra o Cosme Velho, dois cães. Lá eram duas cachorras, uma cor de mel, a outra preta. Aqui são ambos pretos. A primeira vez que os vi achei que eram feios e ferozes. A segunda vez foi quando a Zazu entrou na minha cozinha e roubou um pão de sementes sem desviar uma palha em volta. Ela é uma Ninja, disse o Nuno, oficialmente contrafeito, mas um pouco orgulhoso. Agora, quando a cancela se abre, acho que Zazu e Zuca estão com muito melhor cara. Investigam-me, esparramam-se ao sol e é o princípio de uma linda amizade.

7. A laranjeira do outro lado da cerca ainda está cheia de laranjas, até já caem. Do lado de cá tenho framboesas que ainda não rebentaram, uma espécie de hortelã e espinafres, além das azedas e da uva moscatel. Não sei o que de tudo isto deita um cheiro doce quase como jasmim. Faço planos para um jasmim já crescido, pronto a trepar.

Foto

8. Estendo a minha rede carioca entre a ameixoeira e o pau da cerca. Ainda tem todas as marcas de mofo do Cosme Velho, de tanta chuva em cima. Um ramo de diospireiro pende por cima dos pés, se eu ficar voltada para a laranjeira, do outro lado da cerca. Vejo o céu através das folhas, quase anil como a cortina bordada que trouxe de Minas Gerais. Parece feita para um quintal alentejano quando ficar muito calor, talvez toldo entre a porta e a terra, que está boa para eu plantar, diz o Nuno. É tempo de plantar, ainda não é tempo de caiar. 

9. Ao fim da tarde um clamor sobe da outra ponta da cidade. Olha, foi golo, dizem as mulheres nos quintais. O ar está morno, acabo de escrever no quintal, com um moscardo a zumbir em torno. 

10. O muro faz sombra pela tarde fora e ao centro há a sombra da ameixoeira, do diospireiro, tudo certo. Se não fossem os muros, as paredes grossas, morria-se aqui do frio, do calor. As estações do ano são para levar a sério, quase como se nada tivesse mudado desde o tempo da Travessa dos Almocreves, da Rua da Mancebia, da Ruinha. São os nomes que tenho à minha volta. E as pedras, para carroças, carruagens, cavalos.

11. O taxímetro marca 7,5 euros, mas o taxista diz que são só 5 porque parámos para eu comprar um cesto onde pôr a lenha. Na espera o taxímetro continua a contar, mas segundo o taxista isso não é justo.

12. Pela primeira vez, nada de salamandra até ao anoitecer. Depois o frio corta a pique. Cá vamos para a primeira tarefa, limpar a cinza. Leitores da crónica anterior revelaram-me que há futuro para as cinzas. Peneiradas, podemos usar a fina para fabricar lixívia e deitar a grossa à terra. Uma outra leitora sugeriu tostar cascas de citrinos em cima da salamandra e jogá-las ao lume para cheirar bem. Uma salamandra tem muita ciência. Agora pus-lhe ao lado o cartaz das Dionisíacas do Teatro Oficina que vi em 2010, Bacantes e por aí fora. Achei que ia bem com o fogo, até porque o cartaz são todos eles numa espécie de árvore de fogo. Só não arranjei lugar para o mapa da Amazónia, acho que não vai caber.

13. O Nuno, que estudou Belas-Artes, acartou o tanque de pedra que estava nas minhas ervas. É um forasteiro, como eu, só que muito mais antigo. Já conhece os curativos todos, foi ele quem cortou um pedaço de cacto para aliviar as minhas queimaduras de salamandra. Disse-me para não estranhar se um dia o vir a olhar uma parede do quintal, porque fica assim à espera que lhe venham imagens. Eu não estranho nada, tomara eu que não me estranhem. 

Sugerir correcção
Comentar