A muralha de Adriano e a diplomacia como política

Portugal tem de balançar entre as suas duas vocações: a europeia e a atlântica. E que será tanto mais relevante numa dessas frentes quanto seja capaz de se mostrar relevante na outra.

1. Atenta a evolução da crise ucraniana e atentos os desenvolvimentos da crise israelo-palestiana, muitos são os que voltam a levantar dúvidas sobre a tentação e a tentativa de reconfigurar a política externa como “diplomacia económica”. A terrível situação síria, a preocupante situação iraquiana e a sempre latente convulsão no Norte de África reforçam, aliás, esta tendência.

No caso português, o brado que deu a adesão da Guiné Equatorial à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa suscitou também uma crítica séria ao risco de reducionismo económico ou “economicista” da política externa lusa. No fundo, a excessiva preocupação com a dimensão do comércio e do investimento externos pode originar um défice político, um défice de pensamento e actuação estratégicos, que redunde numa enorme desvantagem para o país. De resto, e por vária vezes (mas em especial na edição de 29 de Novembro de 2011), já aqui se fez a crítica da “diplomacia económica” e da subordinação da nossa agenda exterior a uma visão primacialmente económica.

2. A adesão da Guiné Equatorial fica, todavia e essencialmente, a dever-se a uma vontade das duas margens do Atlântico Sul, Brasil e Angola, que, a partir de certo momento, não conseguimos já contrariar. E essa circunstância encerra em si mesma uma mensagem e uma pedagogia para todos aqueles que, eivados de um “tropismo tropical”, acham que a União Europeia e as suas instituições constrangem e “submetem” Portugal. Está visto e revisto que, mesmo que Portugal tivesse opções estratégicas alternativas e, por exemplo, buscasse um destino tropical em lugar do tronco europeu, a dimensão crítica do país não lhe permitiria impor uma agenda (nem, ao menos, na versão suave de traçar linha vermelhas inultrapassáveis). É evidente – para não dizer que é um lugar-comum – que Portugal tem de balançar entre as suas duas vocações: a europeia e a atlântica. E que será tanto mais relevante numa dessas frentes quanto seja capaz de se mostrar relevante na outra. E é ainda evidente que deve apostar fortemente na “atlantização” da Europa (seja a norte, seja a sul), questão que está precisamente em aberto neste momento.

Nunca é demais lembrar que a Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento, criando um mercado franqueado entre os Estados Unidos e a União Europeia está em pleno curso negocial. Nunca é demais lembrar que, depois de anos e anos de impasse, o Parlamento Europeu acaba de criar uma delegação própria para o Brasil, com existência autónoma do Mercosul. O que significa que, pela primeira vez, poderão equacionar-se ao nível parlamentar, as relações políticas com o Brasil (não apenas, como até aqui, as económicas) e, designadamente, o papel político do Brasil como actor global. 

3. Para um país pequeno, periférico, sem influência internacional, a diplomacia terá de ser um exercício permanente de equilíbrio, situado algures entre a inteligência e a esperteza, essencialmente pensado para garantir a sobrevivência como comunidade estadual independente. Há, na verdade, que alimentar as alianças estratégicas tradicionais, minorar os custos internos e os danos externos da preservação desses laços, escapar às grandes linhas de tensão global de cada conjuntura e, com parcos recursos, garantir nichos preferenciais de afirmação (que serão sempre de reduzida escala). Um ponto é certo: é fundamental valorizar a natureza essencialmente política da actividade de relacionamento externo. A economia, o comércio e o investimento são, como sempre foram, dimensões absolutamente imprescindíveis da política externa. Mas a política exterior é política. Política, ponto final. 

4. É justamente a esta luz – e com a procissão de crises nas fronteiras europeias – que a chancelaria portuguesa tem de se debruçar sobre o referendo escocês. Já há muito tempo se preveniu nestas linhas para os riscos da consulta que terá lugar na Escócia a 14 de Setembro de 2014. Mas, verdade seja dita, continua sem se ver reflexão pública e sem se descortinar uma posição estratégica oficial sobre a matéria. Se o “sim” à independência ganhar o referendo – o que não sendo provável, não é implausível –, as consequências sobre a geopolítica peninsular serão imediatas. A Catalunha e o País Basco estão, neste momento exacto, de olhos postos no que vai passar-se para lá da muralha de Adriano. Uma Escócia independente constituirá um imediato precedente para algumas das aspirações peninsulares e para uma série de outros territórios europeus (Flandres e Padânia, por exemplo).

Qual a posição portuguesa ante o risco de “desintegração” do Estado espanhol? Qual a posição portuguesa, se a reivindicação catalã e basca, mesmo que mal sucedida, subir de tom e criar uma enorme tensão cívica e política, quiçá militar? Como vai Portugal reagir nos foros da União Europeia? Que diálogo tem o Estado português mantido com a Espanha sobre esta questão? Que estratégia tem Portugal concertado com a França, que é directamente interessada, por ter fronteira com o País Basco e com a Catalunha e por ter territórios que supostamente integrariam a nação basca e uma “grande Catalunha” (já para não falar do velho Reino da Navarra)?  

Pode até ser que vença o “não” e que tudo se acalme e pacifique. Pode até ser. Mas mesmo com um “não” – tudo depende do concreto resultado –, muita coisa pode mudar ou precipitar-se. Ou simplesmente adormecer até à próxima crise. Portugal não pode adiar mais a criação de pensamento e doutrina sobre a geopolítica peninsular. Pode precisar muito desse pensamento e dessa doutrina lá para o Outono. E mesmo que não precise, o pensar não ocupa lugar. 

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