O problema do PS não é a liderança. É a falta de memória

Quando uma figura com o peso de António Costa pede um congresso, o partido deve dar-lhe um congresso

António Costa lançou-se na corrida para a liderança do PS. É a terceira vez que tenta ocupar o lugar de António José Seguro. Diz-se que à terceira é de vez. Mas também se diz que tantas vezes vai o cântaro à fonte que algum dia lá deixa a asa. E António Costa quer asas para voar, não se sabe muito bem se para Belém se para São Bento. Quando em 2012 lançou o seu livro Caminho Aberto, que foi interpretado como a rampa de lançamento para Belém, Costa disse que não fugia “a nenhum cargo”. Mas os cargos é que parecem querer fugir de António Costa. Sabe que a sua ida para Belém está pendurada por um eventual "sim" de António Guterres. E para São Bento, quando falta pouco mais de um ano para as legislativas, sabe que o "caminho aberto" começa a estreitar. E, como tal, resolveu arrepiar caminho.

António Costa transformou a “grande vitória” de António José Seguro nas europeias numa “vitória que sabe a pouco”. Quando falta pouco mais de um ano para as legislativas, e depois de o Governo de Passos Coelho ter sofrido duas derrotas estrondosas (autárquicas e legislativas), António Costa sabe que do Largo do Rato até São Bento é praticamente só descer a rua.

Mas António José Seguro, já se percebeu, não lhe irá estender a passadeira. O secretário-geral do PS já deu indicações de que não tomará a iniciativa de convocar um congresso electivo, embora até a Comissão Nacional de amanhã possa mudar de ideias. Caso contrário, resta a António Costa dois caminhos: ou consegue convencer 2/3 dos membros da Comissão Nacional a convocar um congresso, ou então terá de se fazer à estrada e procurar o apoio das distritais do partido. Sendo que para convocar uma reunião magna terá de contar com uma dupla maioria, ou seja, das federações e dos militantes. Mas, nesta corrida, Costa vai ter de atalhar caminho. Há muito que António José Seguro já se fez a essa estrada e, nesta altura, grande parte do aparelho está ao lado do líder. Aliás, ainda ontem a direcção socialista passava a mensagem de que “15 dos 20 presidentes de federações” do partido não consideram ser este “o momento de discutir a liderança”.

Quando uma figura com o peso histórico, carisma e a capacidade de mobilização de António Costa pede um congresso, o partido deve dar-lhe um congresso. Mas isso não significa que seja necessário atropelar os estatutos do partido. Aliás, a capacidade de mobilização dos membros da Comissão Nacional ou das distritais irá funcionar como uma espécie de primárias para António Costa. Se o ex-ministro de Sócrates e de Guterres não conseguir o apoio dos comissários e das distritais, é porque o partido está com Seguro e ponto final. E Costa vai continuar a ser o eterno potencial candidato a qualquer coisa importante que apareça. E Costa sabe que, mesmo que chegue a esse tão almejado congresso, não é líquido que de lá saia vencedor nas directas. É preciso não esquecer que, desde que esta direcção socialista tomou posse, já se filiaram 17 mil militantes.

Naturalmente que não havendo congresso não é só António Costa que sai mal na fotografia. António José Seguro ficará um líder mais fraco (por não ir a votos e ganhar na secretaria) e com uma bancada parlamentar ingovernável. E isso já é visível. Ontem foi notória a ginástica de Alberto Martins para conseguir um consenso entre os deputados socialistas sobre a forma como o grupo deveria votar a moção de censura do PCP.

Não havendo congresso, a bancada do PS regressará aos tempos em que duas dezenas de deputados fiéis e saudosistas de José Sócrates ficavam no Parlamento amuados e a boicotar politicamente as decisões da direcção do partido. Aliás, este grupo só deu tréguas a Seguro no início de 2013, quando António Costa desistiu de concorrer à liderança do partido e assinou o “Documento de Coimbra”. Nesse documento, os dois socialistas comprometeram-se a trabalhar para unir o partido. Seguro fez a sua parte. Colocou ex-ministros de Sócrates como Lacão no Secretariado Nacional ou Alberto Martins a liderar a bancada parlamentar. Francisco Assis, que disputou a liderança com Seguro, foi cabeça de lista às europeias, numa lista onde até houve lugar para Silva Pereira, o braço direito de Sócrates. António Costa cumpriu o prometido até esta semana, quando percebeu que o PS não chegaria às legislativas em condições de ter uma maioria. Ou quando percebeu que o seu Caminho Aberto podia ir dar a lado nenhum.

O PS só se vê nesta altura dividido e confrontado com a necessidade de ter de escolher entre Costa e Seguro porque continua com um problema por resolver. Os socialistas nunca chegaram a ajustar contas com o passado. Foi o que fizeram esta semana os socialistas espanhóis. Rubalcaba atirou a toalha ao chão e disse que o PSOE não recuperou a confiança dos espanhóis porque “há pessoas que se lembram de que isto [o despesismo e a consequente austeridade] começou quando nós estávamos no Governo”. Um exercício que os socialistas nunca fizeram em Portugal. O passado para o PS continua a ser tabu. O que diz António Costa sobre Sócrates? “Não sou daqueles que o consideravam Deus, não o considero agora o Diabo, e a História certamente o julgará.” E o que diz Seguro sobre Sócrates? Seguro foge do assunto como o diabo da cruz.  

Talvez mais do que a questão da liderança, é a falta de coragem de aceitar e assumir o passado que continua a dividir o PS e a separá-lo de uma maioria absoluta. Se Costa e Seguro não têm memória, os portugueses têm.

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