O Governo entorpecido pelas listas VIP

1. O alvitre do Presidente da República sobre um crescimento de 2% na economia este ano ou a glória que Maria Luís Albuquerque reclamou para si e para o Governo ao anunciar que tinha os cofres públicos cheios de nova dívida foram dois tiros de pólvora seca que o bloco Belém/São Bento disparou esta semana. Ninguém ouviu nem ninguém quer ouvir a propaganda do Governo ou do Presidente quando os avisos sobre o ar fresco que supostamente entra no país se contaminam com a confirmação de que o primeiro-ministro tem um passado contributivo maculado pela omissão, quando se adivinha que o presidente de um instituto de alta sensibilidade como o INEM se serve de um helicóptero para transportar uma amiga com doença terminal, quando se fica a saber que o nervo sensível da administração fiscal é um pântano de coscuvilheiros que as suas chefias pensaram controlar com práticas discriminatórias ou quando, seguindo um velho procedimento, o Governo lava as suas mãos de todos os problemas descarregando-os na arraia-miúda.

Nas três últimas semanas, Passos e Portas desbarataram o escasso capital político que uma nesga na crise lhes permitira acumular. Como há muito se adivinhava, o Governo afunda-se no seu próprio torpor. Como a política tem horror ao vazio, nesse ambiente de cansaço vão prosperando os casos que se não têm o mérito de mostrar o futuro valem ao menos a pena por serem capazes de pôr a nu o presente. E o que se vê com as revelações em catadupa é um governo onde escasseia o exemplo, uma administração onde falta a disciplina e princípios e uma sociedade influenciada pelos media que se delicia em coscuvilhar dados, como os do fisco, que fazem parte dos mais elementares direitos de reserva da vida privada. O caso da lista VIP é um exemplo de como todos os corpos do país vegetam num pântano sórdido de irresponsabilidade, impunidade e mesquinhez.

Se tudo aquilo que soubemos nos últimos dias não surgisse após a divulgação do polémico currículo contributivo e fiscal de Pedro Passos Coelho, poderíamos estar por agora a celebrar uma vitória do estado de direito sobre a infame curiosidade dos funcionários da Autoridade Tributária (AT) em relação às declarações fiscais de cidadãos, exerçam eles ou não cargos políticos. Saber-se que mais de uma centena de funcionários foi apanhado a espreitar a intimidade fiscal de terceiros seria por si só uma boa oportunidade para se reforçarem as garantias de defesa dos contribuintes e para se punir os prevaricadores sem que o seu sindicato fosse capaz de mobilizar uma campanha (compreensível) para transformar um acto de gestão num processo político.

O problema é que a lista VIP surge num contexto explosivo. Revelada no dia em que Pedro Passos Coelho explicava as suas omissões com a Segurança Social no Parlamento, estava condenada a reforçar a suspeição de que os políticos vivem num patamar superior de imunidade. Neste pano de fundo, deixou de estar em causa uma preocupação da administração fiscal em gerir informações sensíveis, como lhe competia, e o problema passou a ser percebido como uma manobra do Governo para salvar os seus membros de escrutínios incómodos.

E é por todo este processo ter de se inserir num contexto explosivo (primeiro com pedidos das declarações fiscais do primeiro-ministro na sequência de mais uma onda de choque do caso Tecnoforma, depois com o conhecimento de que teve vários incidentes fiscais) que não se compreende como a análise e estudo da lista VIP ficou remetida a um serviço de informática e a um subdirector da AT. Custa a acreditar que, perante a sensibilidade do processo, com o disparo do número de inquéritos a funcionários por andarem a espreitar o que não deviam, que aliás foi notícia dos jornais já em Dezembro, o secretário de Estado Paulo Núncio não tenha marcado uma reunião, não tenha feito perguntas sobre o que estava em curso no mais sensível serviço sob a sua tutela.

É a falta de resposta a esta perplexidade que torna o processo tão obscuro e a situação de Paulo Núncio tão insustentável. As juras de que ele não sabia de nada prestadas pelo director-geral e pelo subdirector da AT que se demitiram podem revelar nobreza e lealdade, mas para serem verosímeis pressupõem uma visão celestial do mundo e do poder que exige mais fé do que razão. Passa pela cabeça de alguém que estivesse em curso a definição de um pacote de “procedimentos” para poupar “determinadas” pessoas à curiosidade dos funcionários num estado de tal forma avançado que foi objecto de advertências numa acção de formação sem que o secretário de Estado nada soubesse? Como pode um secretário de Estado com provas dadas na eficácia das cobranças fiscais ser tão alheado ao ponto de alguém estar a conceber uma prática ilegal, com relatórios preliminares, despachos e prazos de decisão sem que ele soubesse de nada?

Chegados a este ponto, nem as juras dos directores que se demitiram nem as promessas de Paulo Núncio e de Pedro Passos Coelho servem para apagar o que se passou. Perante a dificuldade de impor a sua verdade, dadas as dificuldades para justificar tanto alheamento, Núncio ficou debilitado politicamente. Com excepção do gesto nobre de Miguel Macedo, vai engrossar a lista dos chefes que se eximiram às suas responsabilidades políticas pelo que se passou em serviços sob a sua tutela. Vai por isso reforçar a imagem de um Governo que se arrasta sem nervo, sentido nem propósito. Um Governo que vive cada vez mais focado no seu amparo do que no país que devia amparar.

2. O ministro Pires de Lima exagerou no tom com que criticou os homens do FMI que a cada passo se entretêm a disparar umas farpas sobre o Governo. Mas, convenhamos, dada a sua soberba e dado o seu longo historial de erros, incongruências, avanços e recuos, dá mesmo vontade de exagerar. Que eles peçam mais reformas para cumprir a sua ideologia liberal, vá que não vá; que eles teçam previsões menos abonatórias do que as do Presidente da República, por que não? Mas o ataque que o fundo fez esta semana aos empresários portugueses, chamando-lhes, com pezinhos de lã, incompetentes e mal treinados, é uma mentira que revela o mundo estratosférico em que esses técnicos vivem.

Nestes anos de ajustamento há muitos portugueses, muitas famílias e muitas classes profissionais que responderam com estoicismo e talento às adversidades, mas poucos terão feito tanto e de forma tão difícil como os agentes da economia privada do país. Num período em que o investimento se reduziu 75%, os empresários portugueses souberam reestruturar as suas empresas, souberam renovar as suas redes de negócios, souberam encontrar alternativas à depressão do mercado interno e aumentaram as quotas de exportação em relação ao PIB para de 30 para 40%. Muitas empresas ficaram pelo caminho, os custos das restruturações no desemprego foram dolorosos, mas hoje os casos de sucesso no agro-alimentar, na metalomecânica, nos serviços com incorporação de tecnologia, no calçado ou na têxtil estão à vista de todos.

O ajustamento não foi ainda mais penoso para o país porque, para surpresa de muitos, os gestores e as empresas portuguesas foram capazes de resistir, de lutar e de crescer. Se os técnicos do FMI não perceberam isso, não perceberam coisa nenhuma. Em vez de ficarem nas suas poltronas em Lisboa, como criticou Pires de Lima, talvez lhes fizesse bem dar um passeio pelo país real.

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