“Nós”: que nós?

Tem razão Jorge Sampaio quando diz que “um destino trágico para a União Europeia” quer dizer “para todos nós”. Mas quando refere o que “a Europa tem feito por nós”, há muitos portugueses que não se sentem incluídos.

Alguns de nós, que éramos jovens e sonhámos com a revolução nos anos 60 e 70 do século XX, que lutámos contra a ditadura em Portugal e que continuamos a acreditar na luta pela igualdade, na diversidade e na liberdade, não aceitamos que os movimentos democráticos de base actuais sejam metidos no mesmo saco dos populismos "de esquerda e de direita" e que o fenómeno Trump seja considerado anti-sistema, quando ele é uma perigosa caricatura do sistema.

Quando depois da ll Guerra Mundial o mundo se viu confrontado com o estalinismo dos países do Pacto de Varsóvia,a impunidade americana que bombardeava Hiroshima e Nagazaki e os destroços económicos e sociais da guerra, foram os movimentos dos mais pobres, dos sindicatos nas suas formas mais ousadas, que impuseram as medidas que levaram ao chamado Estado Social.

Veja-se o que se passou na Grã-Bretanha com o Serviço Nacional de Saúde,com o alojamento social,com a nacionalização das minas.Houve um Governo Trabalhista que formalizou e defendeu essas medidas, mas a força veio do movimento social. Desse modo o Estado Social foi a aceitação pela social-democracia (partidos Trabalhistas, Sociais-Democratas e Socialistas,conforme a designação) de que o Estado podia tomar medidas de redistribuição através dos impostos,que compensassem a desigualdade de nascimento, família,bairro,alimentação,cultura.

No entanto, as democracias formais onde isto se passava mostraram-se indiferentes à continuação de regimes fascistas em Espanha,Portugal e Grécia.E é já em recessão económica e em contraciclo que se deu a revolução do 25 de Abril, de autoria "doméstica" e com influência decisiva em Espanha e na Grécia. Os apoios de fora só vieram depois e muito especificados.

Quando Reagan e Thatcher em 1979 e 80 subiram ao poder, a sua orientação foi fazer regredir tudo isto e a social-democracia não agiu em defesa intransigente do Estado Social, porque foi-se deixando contaminar pelo mercantilismo e pela roleta financeira. Contaminada, ou a mostrar a sua natureza?E quando a espiral da União Europeia e do euro se foi formando para domínio da Alemanha, livre de fronteiras para a sua produção e o seu comércio, a social-democracia não se alarmou com as desigualdades que daí derivariam, como não se alarmou quando a Grã-Bretanha decidiu e participou nessa ocupação do Iraque que havia de dar a tragédia a que estamos a assistir hoje no Médio Oriente.

Quem se alarmou, quem veio para as ruas e as praças, quem encontrou novas formas de luta sem violência, mas com ousadia, quem "ocupou" o espaço público que é de todos nós, foi o movimento que veio a dar o Syriza na Grécia, foram os movimentos contra o despejos das casas e pela defesa da Saúde Pública que veio a dar o Podemos em Espanha, foi o "Que se lixe a troica" em Portugal, que afrontou o Governo da austeridade, foi nos últimos meses o movimento “Nuit debout” em tantas cidades da França.Populistas? Extremistas? Ou simplesmente indignados e à procura de soluções para o sofrimento?

Trump,Le Pen e outros querem oque quer o neoliberalismo,mas sob forma fascista:aumentar as desigualdades,acabar com os impostos sobre o grande capital e com isso impedir qualquer forma de redistribuição,desenvolver o individualismo e o "salve-se quem puder" (ser empreendedor),continuar a degradar a nossa Terra comum,não investir na cultura,na saúde, na instrução e na educação do pensamento crítico e da sua livre expressão.

Acreditamos em que haja uma alternativa a este estado de coisas,que seja o contrário destes desígnios e que decorra em liberdade.E ela virá da base com certeza.Uma base esclarecida e instruída, como acontece nestes movimentos,que será capaz de esclarecer e instruir aqueles que atualmente se deixam arrastar pela demagogia racista, nacionalista, reacionária, e de se organizar na tolerância e na abertura aos outros.Uma base que não é populista e que conta com inúmeros jovens, a nossa esperança!

Esta nossa manifestação de confiança no futuro, que agora escrevemos, foi-nos suscitada pelo texto comovedor – pelo desalento e pela franqueza (falando de dúvidas e da sua talvez já irreversível desconfiança), mas também pelo apelo a batermo-nos – do Presidente Jorge Sampaio. Ele sabe que “a dinâmica do capitalismo global, tal como se desenvolveu (...), exige (...) uma alternativa sólida (...) à financeirização da economia e (...) ao capitalismo autoritário” e exprime a “certeza” que ela “exige uma outra Europa”. Infelizmente, não tira disso todas as consequências no plano político.

Jorge Sampaio fala no “pacto social” (mas a sua estabilidade, quando existiu, assentou num equilíbrio desigual e precário), fala “na liberdade que vem do liberalismo” (mas essa era uma liberdade de exploração, para uns, devida à necessidade, para outros, de sobreviver) e na “equidade social que vem da social-democracia” (e a pobreza? o analfabetismo ou a literacia baixíssima? e a redução de pelo menos meia dúzia de anos na esperança de vida da maioria relativamente às elites?),enfim, fala na “democracia representativa”(mas de há muito se sabe que a representatividade é uma burla, ela não existe nos factos, a separação dos poderes não existe mais, o que existe hoje – como mostrou o professor Pierre Rosanvallon do Collège de France em “Le bon gouvernement”, Seuil, 2015) – é a supremacia de um poder “executivo”, assente direta e indiretamente (através da média) na alta finança e protegido pelas forças de repressão.

Quando Jorge Sampaio pergunta “E nós?”, não podemos deixar de perguntar-lhe em que “nós” está pensando? Tem razão quando diz que “um destino trágico para a União Europeia” quer dizer “para todos nós”. Mas quando refere o que “a Europa tem feito por nós”, há muitos portugueses que, estamos certos, não se sentem incluídos neste “nós”. Quando diz que “se deve começar por reforçar os mecanismos económicos e financeiros da zona euro”, esquece a necessidade de uma política nos países europeus (ou, inicialmente, em parte deles) que seja realmente democrática, isto é, pelo povo e para o povo. No seu texto refere-se várias vezes aos países, mas uma só aos povos europeus, nunca ao povo (no singular), embora se refira cinco vezes a “populismo” ou “populista”.

Que “nós” é este que aparece em “nosso futuro comum”, em “nossas democracias”, em “termos de saber o que queremos” (no “termos de” e no “queremos”), em “reflexão do nosso lado”, em “consenso nacional” e em “nossos interesses”? Estará o povo, estarão os povos, cidadãos ou não de um país, incluindo os refugiados, os que fogem de morte súbita para morte adiada, todos eles, todos nós, dentro deste “nós” que pensa e decide?

É com enorme admiração e simpatia por Jorge Sampaio, político íntegro e sincero, sem a menor dúvida um grande humanista, que lhe agradecemos ter-nos escrito (para todos nós, mais exatamente para todos aqueles de entre nós que podem lê-lo com compreensão) um texto que terá considerado ser seu dever escrever e que o terá feito sofrer.

 

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