Medeiros Ferreira: O “profeta desarmado” no país da “disciplina partidária”

Constelação de estrelas mediáticas e políticas compareceu na Gulbenkian para “celebrar” a vida do ex-ministro que ajudou Portugal a entrar na CEE.

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Medeiros Ferreira foi homenageado na Gulbenkian Carlos Lopes/Arquivo

Por mais de uma vez, ao longo do último dia do colóquio que, na Fundação Gulbenkian, homenageou o desaparecido político e historiador próximo do PS, José Medeiros Ferreira, os intervenientes citaram a expressão com que o próprio político se caracterizava. Via-se como um “profeta desarmado”, recuperado da pena de Maquiavel, expressão que, mais tarde, viria a ser utilizada para catalogar Leon Trotsky. No entanto, ao longo das horas de palestras sobre as mais variadas “facetas” da vida do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros que ajudou Portugal a entrar na CEE, o retrato que pairou no auditório foi de um profeta maldito.

Maldito para o universo de que quis sempre fazer parte, como um dos seus amigos dos tempos de Genebra, Francois Garçon, recordava ontem. Já nesses tempos, Medeiros Ferreira dizia que pretendia ser ministro da Administração Interna ou da Defesa de um Portugal democrático.

Viria a destacar-se à frente do Palácio das Necessidades, durante um governo de Mário Soares. O poeta açoriano, ex-deputado à Assembleia Constituinte, João Luís Medeiros, creditou-lhe o feito de ter “descoberto a rota portuguesa para a Europa”. E, no entanto, apesar de ter sido tanto tão cedo, não viria a ocupar, nos anos finais da sua vida, cargos políticos ou partidários do mesmo relevo.

O “brilho” estava lá, asseguraram todos os oradores. E todos concordaram que “não foi aproveitado devidamente pelo país”, como afirmou a jornalista Constança Cunha e Sá.

O comentador e ex-presidente do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, explicou a razão. Aliava duas características, o ser “muito racional” ao “intuitivo”, indo sempre, por isso, “directamente aos finalmentes”. “O que era muito irritante para muita gente”, rematou. O Presidente da República, que presidiu ao encerramento, reconheceu o “homem adverso a dogmas e a lugares-comuns” e elogiou o seu pensamento “produto de uma reflexão própria e autónoma”.

Fazia sempre aquilo que achava que devia ser feito. Por isso “esteve com Sá Carneiro, esteve com Ramalho Eanes e esteve com a sua família [PS] mas com condições”. O ex-presidente da República assinalou isso mesmo: "Ser verdadeiro por dever é coisa totalmente diferente de o ser por medo das consequências prejudiciais ou por desejo de injustas benesses pessoais. A história pessoal de Medeiros Ferreira mostra como procurou ser verdadeiro por dever”, afirmou Ramalho Eanes.

O director da SIC Notícias, António José Teixeira, confirmou a “relação distante com o PS quando recordou a sua saída do palco parlamentar. Tinha um “trajecto que dificilmente seria compatível com qualquer disciplina partidária”. E “pagou o preço” da sua independência quando defendeu que José Sócrates não se devia recandidatar a primeiro-ministro. Passou da “bancada [parlamentar] para fora dela”, explicou o também jornalista.

“Na mouche, não foi, ó Marcelo?”
A política perdia assim a possibilidade de ter nas suas fileiras, um político que não era subserviente e era capaz de enfrentar os “poderes fácticos”. Como Marcelo Rebelo de Sousa exemplificou com um “momento único”, acontecido em Outubro de 1978. Esteve com ele em Bruxelas para explicar o 25 de Abril  “a centenas de banqueiros e empresários”. Convidado a “falar da descolonização” perante os donos do negócio dos diamantes em África, Ferreira “disse o que queria dizer”. “No final, nem uma palma”, recordava Marcelo. E como reagiu o açoriano? Com um “brilho nos olhos”, sussurrou ao social-democrata: “Na mouche, não foi ó Marcelo?”

O consenso entre os oradores resumiu também as suas capacidades. “Via o que se ia passar e o como ia acabar”, sempre apoiado nas lições da História. O que o forçou a choques até com Mário Soares, a quem reconhecia como um igual na capacidade intuitiva de entender a política.

A dada altura , João Gonçalves – convidado para elucidar a plateia sobre a passagem de Medeiros Ferreira pelo universo da blogosfera – citou um post: “Em poucos minutos de debate no Parlamento já ouvi citar Shakespeare, Kant, Jasper e Habermas. Não é por falta de erudição que estamos onde estamos…” A audiência riu, recordando a ironia de Medeiros Ferreira. Subentendida naquela sala, estava a ideia do erro do país em não ter aproveitado o “insubstituível” – expressão da ex-bloquista Joana Amaral Dias - e “profeta desarmado”.

Além do colóquio, que ontem terminou em Lisboa, a homenagem a Medeiros Ferreira terá como consequência a publicação de um livro que reúne depoimentos de mais de 100 personalidades da elite pensante e política portuguesa. Com o título “José Medeiros Ferreira: A Liberdade Interventiva”, incluem-se as participações de três Presidentes da República e quatro presidentes da Assembleia da República. Do universo político português ficam a faltar textos da esfera comunista e centrista.

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